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#Contos#Literatura Brasileira

Casa Velha

Por Machado de Assis (1885)

Havia ali dous retratos, um do finado ex-ministro, outro de Pedro I. Conquanto a luz não fosse boa, achei que o Félix parecia-se muito com o pai, descontada a idade, porque o retrato era de 1829, quando o ex-ministro tinha quarenta e quatro anos. A cabeça era altiva, o olhar inteligente, a boca voluptuosa; foi a impressão que me deixou o retrato. Félix não tinha, porém, a primeira nem a última expressão; a semelhança restringia-se à configuraçao do rosto, ao corte e viveza dos olhos.

—Aqui está tudo, disse-me Félix; aquela porta dá para uma saleta, onde poderá trabalhar, quando quiser, se não preferir aqui mesmo.

Já disse que saí de lá encantado, e que os deixei igualmente encantados comigo. Comecei os meus trabalhos de investigação três dias depois. Só então revelei a Monsenhor Queirós, meu velho mestre, o projeto que tinha de escrever uma história do Primeiro Reinado. E revelei-lho com o único fim de lhe contar as impressões que trouxera da Casa Velha, e confiar as minhas esperanças de algum achado de valor político. Monsenhor Queirós abanou a cabeça, desconsolado. Era um bom filho da Igreja, que me faz o que sou, menos a tendência política, apesar de que no tempo em que ele floresceu muitos servidores da Igreja também o eram do Estado. Não aprovou a idéia: mas não gastou tempo em tentar dissuadir-me. "Conquanto, disse-me ele, que você não prejudique sua mãe, que é a Igreja. O Estado é um padrasto."

A meu cunhado e minha irmã, que sabiam do projeto, apenas contei o que se passara na Casa Velha; ficaram contentes, e minha irmã pediu-me que a levasse lá, alguma vez, para conhecer a casa e a família.

Na quarta-feira comecei a pesquisa. Vi então que era mais fácil projetá-la, pedi-la e obtê-la, que realmente executá-la. Quando me achei na biblioteca e no gabinete contíguo, com os livros e papéis à minha disposição, senti-me constrangido, sem saber por onde começasse. Não era uma casa pública, arquivo ou biblioteca, era um lugar onde, no que tocava a papéis e manuscritos, podia dar com alguma cousa privada e doméstica. Para melhor haver-me, pedi ao Félix que me auxiliasse, disse-lhe até com franqueza, a causa do meu acanhamento. Ele respondeu. polidamente, que tudo estava em boas mãos. Insistindo eu, consentiu em servir-me (palavras suas) de sacristão; pedia, porém, licença naquele dia porque tinha de sair; e, na seguinte semana, desde terça-feira até sábado, estaria na roga. Voltaria sábado à noite, e daí até o fim, estava às minhas ordens. Aceitei este convênio.

Ocupei os primeiros dias na leitura de gazetas e opúsculos. Conhecia alguns deles, outros não, e não eram estes os menos interessantes. Logo no dia seguinte, Félix acompanhou-me nesse trabalho, e daí em diante até seguir para a roga. Eu, em geral chegava às dez horas, conversava um pouco com o dona da casa, as sobrinhas e o coronel; o primo Eduardo retirara-se para S. Paulo. Falávamos das cousas do dia, e poucos minutos depois, nunca mais de meia hora, recolhia-me à biblioteca com o filho do ex-ministro. As duas horas, em ponto, era o jantar. No primeiro dia recusei, mas a dona da casa declarou-me que era a condição do obséquio prestado. Ou jantaria com eles, ou retirava-me a licença. Tudo isso com tão boa cara que era impossível teimar na recusa. Jantava. Entre três e quatro horas descansava um pouco, e depois continuava o trabalho até anoitecer.

Um dia, quando ainda o Félix estava na roga, D. Antônia foi ter comigo, com o pretexto de ver o meu trabalho, que lhe não interessava nada. Na véspera, ao jantar, disse-lhe que estimava muito ver as terras da Europa, especialmente França e Itália, e talvez ali fosse daí a meses. D. Antônia, entrando na biblioteca, logo depois de algumas palavras insignificantes, guiou a conversa para a viagem, e acabou pedindo que persuadisse o filho a ir comigo.

— Eu, minha senhora?

— Não se admire do pedido; eu já reparei, apesar do pouco tempo, que Vossa Reverendíssima e ele gostam muito um do outro, e sei que se lhe disser isso, com vontade ele cede.

—Não creio que tenha mais força que sua mãe. Já lhe tem lembrado isso?

— Já, respondeu D. Antônia com uma entonação demorada que exprimia longas instâncias sem efeito.

E logo depois com um modo alegre:

— As mães como eu não podem com os filhos. O meu foi criado com muito amor e bastante fraqueza. Tenho-lhe pedido mais de uma vez; ele recusa sempre dizendo que não quer separar-se de mim. Mentira! A verdade é que ele não quer sair daqui. Não tem ambições, faz estudos incompletos, não lhe importa nada. Há uns parentes nossos em Portugal. Já lhe disse que fosse visitá-los, que eles desejavam vê-lo, e que fosse depois à Espanha e França e outros lugares. José Bonifácio lá esteve e contava cousas muito interessantes. Sabe o que ele me responde? Que tem medo do mar; ou então repete que não quer separar-se de mim.

— E não acha que esta segunda razão é a verdadeira?

D. Antônia olhou para o chão, e disse com voz sumida:

—Pode ser.

— Se é a verdadeira, haveria um meio de conciliar tudo, era irem ambos, e eu com ambos, e para mim seria um imenso prazer.

— Eu?

— Pois então?

(continua...)

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