Por Machado de Assis (1877)
Que queres que eu faça a um homem que diz aquilo? Se não fosse já casada era possível que me indignasse mais. Se fosse livre era possível que lhe fizesse o que fizeste ao outro. Mas eu não posso cuidar dessas coisas...
EMÍLIA
Nem ouvindo a preferência do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que diz aquilo! Que calma! Que indiferença!
MARGARIDA
É mau! É mau!
EMÍLIA
Merecia castigo...
MARGARIDA
Merecia. Queres tu castigá-lo?
EMÍLIA
Não vale a pena.
MARGARIDA
Mas tu castigaste o outro.
EMÍLIA
Sim... mas não vale a pena.
MARGARIDA
Dissimulada!
EMÍLIA
(rindo)
Por que dizes isso?
MARGARIDA
Porque já te vejo meio tentada a uma vingança nova...
EMÍLIA
Eu? Ora, qual!
MARGARIDA
Que tem? Não é crime...
EMÍLIA
Não é, decerto; mas... Veremos!
MARGARIDA
Ah! Serás capaz?
EMÍLIA
(com um olhar de orgulho)
Capaz?
MARGARIDA
Beijar-te-á ele a ponta dos sapatos?
EMÍLIA
(apontando com o leque para o pé)
E hão de ser estes...
MARGARIDA
Aí vem o homem! (Tito aparece à porta da casa)
Cena V
TITO, EMÍLIA, MARGARIDA
TITO
(parando à porta)
Não é segredo?
EMÍLIA
Qual! Pode vir.
MARGARIDA
Descansou mais?
TITO
Pois não! Onde está o coronel?
EMÍLIA
Está lendo as folhas da corte.
TITO
Coitado do coronel!
EMÍLIA
Coitado por quê?
TITO
Talvez em breve tenha de voltar para o exército. É duro. Quando a gente se afaz a certos lugares e certos hábitos lá lhe custa a mudar... Mas a força maior... Não as incomoda o fumo?
EMÍLIA
Não, senhor!
TITO
Então posso continuar a fumar?
MARGARIDA
Pode.
TITO
É um mau vício, mas é o meu único vício. Quando fumo parece que aspiro a eternidade. Enlevo-me todo e mudo de ser. Divina invenção!
EMÍLIA
Dizem que é excelente para os desgostos amorosos.
TITO
Isso não sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não há solidão possível. É a melhor companhia deste mundo. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: reduzindo-se pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infalível de todas as coisas: é o aviso filosófico, é a sentença fúnebre que nos acompanha em toda a parte. Já é um grande progresso... Mas aqui estou eu a aborrecê-las com uma dissertação aborrecida... Hão de desculpar... que foi descuido. (fixando o olhar em Emília) Ora, a falar a verdade, eu vou desconfiando; V. Exa. olha-me com uns olhos tão singulares.
EMÍLIA
Não sei se são singulares, mas são os meus.
TITO
Penso que não são os do costume. Está talvez V. Exa. a dizer consigo que eu sou um esquisito, um singular, um...
EMÍLIA
Um vaidoso, é verdade.
TITO
Sétimo mandamento: não levantarás falsos testemunhos.
EMÍLIA
Falsos, diz o mandamento.
TITO
Não me dirá em que sou eu vaidoso?
EMÍLIA
Ah! a isso não respondo eu.
TITO
Por que não quer?
EMÍLIA
Porque... não sei. É uma coisa que se sente, mas que se não pode descobrir. Respira-lhe a vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto... mas não se atina com a verdadeira origem de tal doença.
TITO
É pena. Eu tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnóstico da minha doença. Em compensação pode ouvir da minha o diagnóstico da sua... A sua doença é... Digo?
EMÍLIA
Pode dizer.
TITO
É um despeitozinho.
EMÍLIA
Deveras?
TITO
Despeito pelo que eu disse há pouco.
EMÍLIA
(rindo)
Puro engano!
TITO
É com certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de coisa alguma. A natureza é que me fez assim.
EMÍLIA
Só a natureza?
TITO
E um tanto de estudo. Ora, vou desfiar-lhe as minhas razões. Veja se posso amar ou pretender amar: 1°, não sou bonito...
EMÍLIA
Oh!...
TITO
Agradeço o protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou.
MARGARIDA
Oh!
TITO
(depois de inclinar-se)
2°, não sou curioso, e o amor, se o reduzirmos às suas verdadeiras proporções, não passa de uma curiosidade; 3°, não sou paciente, e nas conquistas amorosas, a paciência é a principal virtude; 4°, finalmente, não sou idiota, porque, se com todos estes defeitos, pretendesse amar, caía na maior falta de razão. Aqui está o que eu sou por natural e por indústria; veja se se pode fazer de mim um Werther...
MARGARIDA
Emília, parece que é sincero.
EMÍLIA
Acreditas?
TITO
Sincero como a verdade.
EMÍLIA
Em último caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso?
TITO
Ah! Nada! Nada!
EMÍLIA
O que farei é lamentar aquela que cair na desgraça de pretender tão duro coração... se alguma houver.
TITO
Eu creio que não há. (entra um criado e vai falar a Margarida)
EMÍLIA
Pois é o mais que posso fazer...
MARGARIDA
Dão-me licença por alguns minutos... Volto já.
EMÍLIA
Não te demores!
MARGARIDA
Ficas?
EMÍLIA
Fico. Creio que não há receio...
TITO
Ora, receio... (Margarida entra em casa, o criado sai pelo fundo)
Cena VI
TITO, EMÍLIA
EMÍLIA
Há muito tempo que se dá com o marido de Margarida?
TITO
Desde criança.
EMÍLIA
Ah! foi criança?...
TITO
Ainda hoje sou.
EMÍLIA
(voltando ao sério)
É exatamente o tempo das minhas relações com ela. Nunca me arrependi.
TITO
Nem eu.
EMÍLIA
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877