Por Machado de Assis (1870)
Aqui fui obrigado a confessar mentalmente que o Tobias merecia o título de incomparável, como Enéas o de pio. Compreendi a razão por que não quis que eu o acordasse; era para causar-lhe a surpresa de vê-lo depois.
Como era natural, quis o meu amigo que eu lhe explicasse a história do casamento, tão súbito, e eu já me dispunha a isso, quando a porta se abriu e entrou o dono da casa. Era outro.
Já não tinha as roupas esquisitas e o ar singular com que o vira no meu quarto; agora trajava com aquela elegância grave que cabe a um velho, e pairava-lhe nos lábios o mais amável sorriso.
— Então, meu caro genro, disse-me ele depois dos cumprimentos gerais, que me diz à vinda do seu amigo?
— Digo, meu caro sogro, que o senhor é uma pérola. Não imaginará talvez o prazer que me deu com esta surpresa, porque o Vaz foi e é o meu primeiro amigo. Aproveitei a ocasião para o apresentar a todas os convidados, que foram de geral acordo em que o dr. Vaz era um digno amigo do dr. Camilo da Anunciação. O incomparável Tobias manifestou o desejo e a esperança de que dentro de pouco tempo ficaria a sua pessoa ligada à de nós ambos, por modo que fôssemos todos designados: os três amigos do peito.
Bateu meia-noite não sei em que igreja da vizinhança. Ergueu-se o incomparável Tobias, e disse-me:
— Meu caro genro, vamos cumprimentar a sua noiva; aproxima-se a hora do casamento. Levantaram-se todos e dirigiram-se para a porta da entrada, indo na frente eu, o Tobias e o Vaz. Confesso que, de todos os incidentes daquela noite, este foi o que mais me impressionou. A idéia de ir ver uma formosa donzela, na flor da idade, que devia ser minha esposa — esposa de um velho filósofo já desenganado das ilusões da vida —, essa idéia, confesso que me aterrou.
Atravessamos uma sala e chegamos diante de uma porta, meia aberta, dando para outra sala ricamente iluminada. Abriram a porta dois lacaios, e todos nós entramos. Ao fundo, sentada num riquíssimo divã azul, estava já pronta e deslumbrante de beleza a sra. D. Eusébia. Tinha eu até então visto muitas mulheres de fascinar; nenhuma chegava aos pés daquela. Era uma criação de poeta oriental. Comparando a minha velhice à mocidade de Eusébia, senti-me envergonhado, e tive ímpetos de renunciar ao casamento. Fui apresentado à noiva pelo pai, e recebido por ela com uma afabilidade, uma ternura, que acabaram por vencer-me completamente. No fim de dois minutos estava eu cegamente apaixonado.
— Meu pai não podia escolher melhor marido para mim, disse-me ela fitando-me uns olhos claros e transparentes; espero que tenha a felicidade de corresponder aos seus
méritos.
Balbuciei uma resposta; não sei o que disse; tinha os olhos embebidos nos dela. Eusébia levantou-se e disse ao pai:
— Estou pronta.
Pedi que Vaz fosse uma das testemunhas do casamento, o que foi aceito; a outra testemunha foi o coronel. A condessa serviu de madrinha.
Saímos dali para a capela, que era na mesma casa, e pouco retirada; já lá se achavam o padre e o sacristão. Eram ambos velhos como toda a gente que havia em casa, exceto Eusébia.
Minha noiva deu o sim com uma voz forte, e eu com voz fraquíssima; pareciam invertidos os papéis.
Concluído o casamento, ouvimos um pequeno discurso do padre acerca dos deveres que o casamento impõe e da santidade daquela cerimônia. O padre era um poço de ciência e um milagre de concisão; disse muito em pouquíssimas palavras. Soube depois que nunca tinha ido ao parlamento.
À cerimônia do casamento seguiu-se um ligeiro chá e alguma música. A condessa dançou nm minueto com o velho condecorado, e assim terminou a festa.
Conduzido aos meus aposentos por todos os convidados, soube em caminho que o Vaz dormiria lá, por convite expresso do incomparável Tobias, que fez a mesma fineza aos circunstantes.
Quando me achei só com a minha noiva, caí de joelhos e disse-lhe com a maior ternura: — Tanto vivi para encontrar agora, já quase no túmulo, a maior ventura que pode caber ao homem, porque o amor de uma mulher como tu é um verdadeiro presente do céu! Falo em amor e não sei se tenho direito de o fazer... porque eu sou velho, e tu... — Cale-se! cale-se! disse-me Eusébia assustada.
E foi cair num sofá com as mãos no rosto.
Espantou-me aquele movimento, e durante alguns minutos fiquei na posição em que estava, sem saber o que havia de dizer.
Eusébia parecia estar chorando.
Levantei-me afinal, e acercando-me do sofá, perguntei-lhe que motivo tinha para aquelas lágrimas.
Não me respondeu.
Tive uma suspeita; imaginei que Eusébia amava alguém, e que, para castigá-la do crime desse amor, obrigavam-na a casar com um velho desconhecido a quem ela não podia amar.
Despertou-se-me uma fibra de D. Quixote. Era uma vítima; cumpria salvá-la. Aproximei me de Eusébia, confiei-lhe a minha suspeita, e declarei-lhe a minha resolução. Quando eu esperava vê-la agradecer-me de joelhos o nobre impulso das minhas palavras, vi com surpresa que a moça olhava para mim com ar de compaixão, e dizia-me abanando a cabeça:
— Desgraçado! é o senhor quem está perdido!
(continua...)
ASSIS, Machado de. A vida eterna. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, ano 6, [p. e n. desconhecidos], 1870.