Por Machado de Assis (1886)
— É isto, dizia consigo Tibério Valença, não há outro meio. Longe esquece-lhe tudo. A tal pianista não é lá essas belezas que impressionem muito.
O narrador protesta contra esta última reflexão de Tibério Valença, que, de certo, na idade que contava, já se esquecera dos predicados da beleza e dos milagres da simpatia que fazem amar às feias. E até quando as feias se fazem amar, é sempre doida e perdidamente, diz La Bruyère, porque foi de certo por filtros poderosos e vínculos desconhecidos que elas souberam atrair e prender.
Tibério Valença não admitia a hipótese de amar a uma feia, nem de amar muito tempo uma bonita. Era desta negação que ele partia, como homem sensual e positivo que era. Resolveu, portanto, mandar o filho para fora, e comunicou-lhe o projeto oito dias depois das cenas que acima narrei.
Tomás recebeu a notícia com aparente indiferença. O pai ia armado de objeções para responder às que lhe dispensasse o rapaz, e ficou muito admirado quando este curvou-se submisso à ordem de partir.
Entretanto aproveitou a ocasião para usar de alguma cordura e generosidade. — Fazes gosto em ir? perguntou-lhe.
— Faço, meu pai, foi a resposta de Tomás.
Era à Bahia que devia ir o filho de Tibério.
Desde o dia desta conferência Tomás mostrou-se mais e mais triste, sem todavia manifestar a ninguém com que sentimento recebera a notícia de deixar o Rio de Janeiro. Tomás e Malvina só se tinham encontrado duas vezes depois do dia em que esta foi despedida da casa de Tibério. A primeira foi à porta da casa dela. Tomás passava na ocasião em que Malvina ia entrar. Falaram-se. Não era preciso nenhum deles perguntar se sentiam saudades com a ausência e a separação. O ar de ambos dizia tudo. Tomás, às interrogações de Malvina, disse que passava ali sempre, e sempre via as janelas fechadas. Cuidou um dia que ela estivesse doente.
— Não estive doente: é preciso que nos esqueçamos um do outro. Se eu não puder, seja...
— Eu? interrompeu Tomás.
— É preciso, respondeu a pianista suspirando.
— Nunca, disse Tomás.
A segunda vez que se viram foi em casa de um amigo cuja irmã recebia lições de Malvina. Estava lá o moço na ocasião em que a pianista entrou. Malvina pretextou doença, e disse que só para não ser esperada em vão tinha ido lá. Depois do que, retirou se.
Tomás resolveu ir despedir-se de Malvina. Seus esforços, porém, foram inúteis. Em casa sempre lhe diziam que ela tinha saído, e as janelas constantemente fechadas pareciam as portas do túmulo do amor dos dois.
Na véspera de partir Tomás convenceu-se de que era impossível despedir-se da moça. Desistiu de procurá-la e resolveu-se, com mágoa, a sair do Rio de Janeiro sem dar-lhe o adeus de despedida.
— Nobre moça! dizia ele consigo; não quer que do nosso encontro resulte atear-se o amor que me prende a ela.
Enfim Tomás partiu.
Tibério deu-lhe todas as cartas e ordens necessárias para que nada lhe faltasse na Bahia, e soltou do peito um suspiro de consolação quando o filho saiu à barra.
* * *
Malvina soube da partida de Tomás logo no dia seguinte. Chorou amargamente. Por que sairia? Ela acreditou que dois motivos seriam: ou resolução corajosa para esquecer um amor que lhe trouxera o desgosto do pai; ou uma intimação cruel do pai. De um ou outro modo Malvina, estimava esta separação. Se ela não esquecia o rapaz, tinha esperanças de que o rapaz a esquecesse, e então não sofria com esse amor que só podia trazer desgraças ao filho de Tibério Valença.
Este nobre pensamento denota claramente o caráter elevado e desinteressado e o amor profundo e corajoso da pianista. Tanto bastava para que ela merecesse casar com o rapaz.
Quanto a Tomás, partiu com o coração apertado e o ânimo abatido. À última hora foi que ele sentiu quanto amava a moça e como nesta separação lhe sangrava o coração. Mas devia partir. Afogou a dor em lágrimas e partiu.
* * *
Correram dois meses.
Durante os primeiros dias de sua residência na Bahia, Tomás sentiu as grandes saudades do grande amor que nutria por Malvina. Fez-se-lhe em torno maior solidão ainda que a que já tinha. Parecia-lhe que ia morrer naquele desterro, sem a luz e o calor que lhe dava vida. Estando, por assim dizer, a dois passos do Rio de Janeiro, afigurava-se-lhe achar-se no cabo do mundo, longe, eternamente longe, infinitamente longe de Malvina. O correspondente de Tibério Valença, previamente informado por este, procurou todos os meios de distrair o espírito de Tomás. Tudo foi em vão. Tomás olhava para tudo com indiferença, isto mesmo quando lhe era dado olhar, porque quase sempre passava os dias encerrado em casa, recusando toda a espécie de distração.
Esta mágoa tão profunda tinha eco em Malvina. A pianista sentia do mesmo modo a ausência de Tomás; não é que tivesse ocasião ou procurasse vê-lo, na época em que se achava na corte, mas é que, separados pelo mar, parecia que estavam separados pela morte, e que nunca mais tinham de ver-se.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A pianista. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, n. 9-10, set.-out. 1866. (Publicado em folhetins, assinado por J.J.).