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#Crônicas#Literatura Brasileira

Crônica do Viver Baiano Seiscentista

Por Gregório de Matos (1650)

AO RETIRO QUE FEZ ESTE ILUSTRÍSSIMO PRELADO SENTIDISSIMO, E MAGOADO PELA TIRANA, E VIOLENTA MORTE QUE O CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREIRA DE NORONHA DEU A SEU SOBRINHO.


Um benemérito peito, uma Sacra Dignidade

sentir vem na soledade

da parca o cruel efeito:

que de um golpe sem respeito

quis cortar o vital fio,

sem atender Senhorio,

nem ver, o despojo horrendo, de quem se agravara, vendo desautorizado o brio.

Já de todo o mal distando em Belém busca o retiro, onde um, e outro suspiro

a pena estão aumentando:

e no pesar contemplando jamais será divertido,

vendo de todo perdido

por culpa de um traidor vil aquele Adónis gentil

a cadáver reduzido

Se a lei se deve observar, como agora falta, e tarda? a Justiça apenas guarda,

que agradou por aguardar: privou por se depravar

pela via nunca usada,

deu ao vício franca entrada, e bem se pode entender,

que enquanto vivo há de ser privado pela privada.

Mas que muito haja amparado um Calígula tirano

a seu amigo inumano

Capitão de cama, e lado?

o vulgo tem murmurado,

e a maldade não se doma,

e a sem-razão, que se assoma, como demais já sobeja

contra um Ministro da Igreja um nefando de Sodoma.


AOS MISSIONÁRIOS, À QUEM O ARCEBISPO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEUS RECOMENDAVA MUYTO AS VIAS SACRAS, QUE ENCHENDO A CIDADE DE CRUZES CHAMAVAM DO PÚLPITO AS PESSOAS POR SEUS NOMES, REPREENDENDO, À QUEM FALTAVA.


Via de perfeição é a sacra via, Via do céu, caminho da verdade:

Mas ir ao Céu com tal publicidade, Mais que à virtude, o boto à hipocrisia.

O ódio é d'alma infame companhia, A paz deixou-a Deus à cristandade:

Mas arrastar por força, uma vontade, Em vez de perfeição é tirania.

O dar pregões do púlpito e indecência, Que de Fulano? venha aqui sicrano:

Porque o pecado, o pecador se veja:

E próprio de um Porteiro d'audiência,

E se nisto maldigo, ou mal me engano, Eu me submeto à Santa Madre Igreja.


A CERTO PROVINCIAL DE CERTA REGIÃO QUE PREGOU O MANDATO EM TERMOS TA, RIDÍCULOS QUE MAIS SERVIU DE MOTIVO DE RISO, DO QUE DECOMPAIXÃO.


Inda está por decidir, meu Padre Provincial,

se aquele sermão fatal foi de chorar, se de rir:

cada qual pode inferir,

o que melhor lhe estiver,

porque aquela má mulher da perversa sinagoga

fez no sermão tal chinoga,

que o não deixou entender.

Certo, que este lava-pés me deixou escangalhado,

e quanto a mim foi traçado para risonho entremez:

eu lhe quero dar das três

a outro qualquer Pregador,

seja ele quem quer que for, já filósofo, ou já letrado,

e quero perder dobrado, se fizer outro pior.

E vossa Paternidade, pelo que deve à virtude,

de tais pensamentos mude,

que prega mal na verdade: faça atos de caridade, e trate de se emendar,

não nos venha mais pregar, que jurou o Mestre Escola,

que por pregar pare Angola o haviam de degradar.


AO CURA DA SÉ QUE ERA NAQUELLE TEMPO, INTRODUZIDA ALI POR DINHEIRO, E COM PRESUNÇÕES DE NAMORADO SATIRIZA O POETA COMO CRIATURA DO PRELADO.


O Cura, a quem toca a cura de curar esta cidade,

cheia a tem de enfermidade

tão mortal, que não tem cura:

dizem, que a si só se cura de uma natural sezão, que lhe dá na ocasião

de ver as Moças no eirado,

com que o Cura é o curado, e as Moças seu cura são.

Desta meizinha se argüi, que ao tal Cura assezoado

mais lhe rende o ser curado,

que o Curado, que possui, grande virtude lhe influi o curado exterior:

mas o vício interior

Amor curá-lo procura, porque Amor todo loucura, se a cura é de louco amor.

Disto cura o nosso Cura, porque é curador maldito,

mas ao mal de ser cabrito nunca pôde dar-lhe cura:

É verdade, que a tonsura meteu o Cabra na Sé, e quando vai dizer "Te

Deum laudamus" aos doentes, se lhe resvale entre dentes, e em lugar de Te diz me.

Como ser douto cobiça,

a qualquer Moça de jeito onde pôs o seu direito,

logo acha, que tem justiça: a dar-lhe favor se atiça,

e para o fazer com arte,

não só favorece a parte,

mas toda a prosápia má, se justiça lhe não dá,

lhe dá direito, que farte.

Porque o demo lhe procura tecer laços, e urdir teias,

não cura de almas alheias, e só do seu corpo cura: debaixo da capa escura

de um beato capuchinho é beato tão maligno

o cura, que por seu mal com calva sacerdotal

é sacerdote calvino.

Em um tempo é tão velhaco, tão dissimulado, e tanto,

que só por parecer santo

canoniza em santo um caco:

se conforme o adágio fraco ninguém pode dar, senão aquilo, que tem na mão,

claro está que no seu tanto não faria um ladrão santo, senão um Santo Ladrão.

Estou em crer, que hoje em dia já os cânones sagrados

não reputam por pecados pecados de simonia: os que vêem tanta ousadia, com que comprados estão os curados mão por mão,

devem crer, como já creram,

que ou os cânones morreram, ou então a Santa unção.


AO ILUSTRÍSSIMO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEOS MUDANDO-SE PARA O SEU NOVO PALÁCIO, QUE COMPROU.


Sacro Pastor da América florida,

Que para o bom regímen do teu gado

De exemplo fabricastes o cajado,

E de frauta te sene a mesma vida.

Outros tua virtude esclarecida

(continua...)

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