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#Epopeias#Literatura Brasileira

Feitos de Mem de Sá

Por José de Anchieta (1563)

Cingidos em redor de altos montes e praias rochosas,

por onde o Sul chuvoso solta as rédeas em fúria,

ergue ondas revoltas, envolve em névoas, mares e céus

e varre com turbilhões de nuvens os campos.

Deu à terra seu próprio nome o Espírito Santo.

Habitam-na portugueses. Guerras horrendas

desfecha sobre ela o Tamoio feroz: é este o nome

que a fera tribo herdou dos avós. Inúmeros danos

causa por toda a parte, talando as culturas em fruto

e arrebatando os homens. Afastam-se altivos com a presa

e fartam-se de sangue humano os ávidos ventres.

eis que se ajuntam, vindos de várias paragens,

em magotes cerrados, para arruinar para sempre

as aldeias cristãs, ferve-lhes nas veias a raiva

a louca paixão da guerra e o apetite da carne

humana, batem os corações em fúrias amentes.

Se o braço de Deus não impede esses aprestos ferozes

com o socorro celeste, senão dispensa essas tribos altivas

que vibram ao incêndio da guerra e ao faro do sangue,

em breve a ímpia guerra tudo terá conspurcado

e encharcada se verá a terra no sangue dos justos.

Transposto finalmente o oceano, fundeiam no porto.

Sabe então o valente chefe que cruas guerras se aprestam

contra os cristãos, tribos ferozes se insurgem

de toda a parte, decididas de uma vez para sempre

a ferir, matar, devorar a todos os brancos.

O primeiro cuidado do chefe foi erguer logo a mente

ao Pai celeste e revolvendo em silêncio todos esses sucessos

implorar para os sitiados o auxílio que desce

copioso do alto: pois a clemência onipotente, vencida

pela prece dos filhos, sobre eles se inclina piedosa.

Escolhe depois duas caravelas da armada

e manda equipá-las. Envia Fernão à peleja,

seu filho querido, ainda na primavera da vida,

jovem de coração varonil, alma plasmada

nos moldes paternos, enche-lhe o coração de conselhos,

e diz-lhe: “aprende, filho, desde os anos mais tenros,

a buscar no trabalho as virtudes e a glória,

não honras humanas: pois que haverá sobre a terra

capaz de encher-te a alma?” No coração insculpido

leva o nome de Deus, e, na chama da fé abrasado,

onde quer que apertem os trabalhos da guerra,

arroja o dique do peito à maldade furiosa.

Vês como gentes cruéis em hordas imensas preparam

aos Cristãos batalhas ferozes. De morte humilhante

ameaçam agora as cabeças dos pobres colonos,

quais tigres cruéis em redor da preia lanhada

sorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.

Que esperança ou que alívio resta ainda aos sitiados?

Donde tirar auxílio? com que forças enfrentar inimigo

tão sanguinário? com que esforço, tão poucos

poderão repelir das aldeias as ondas que avançam?

Se é força buscar na fuga a salvação (vergonhoso

embora o proceder), se é força deixar ao selvagem

lares e férteis campos? lembra-te que mares profundos

tolhem a retirada, nem têm naus que sulquem as ondas

do pego irado, e salvem a vida pobres que tudo perderam.

Eia, pois, sem tardar, lança-te ao mar encrespado

e de novo provoca as vagas em naus bem armadas.

Voa em auxílio da pobre gente no que puderes.

Qualquer a sorte que te espera, quaisquer os trabalhos,

esforça-te por arrostá-los e suplantá-los com brio.

Se a destra onipotente te conservar são e salvo

e te conceder, com a derrota do inimigo, o pendão da vitória

e desdobrar ao olhar paterno os sinais do triunfo:

ditoso dia nos será a ambos! A Deus soberano

cumpriremos os votos e renderemos os devidos louvores.

A glória conquistada em guerra pela honra divina

te será muito doce: eis, filho, o teu belo futuro!

Se porém por desígnio imutável do Pai sempiterno

o último alento te colher na primavera da vida,

se a morte te arrancar em plena flor da existência:

então te aguardarão imarcescíveis louros e honra perene,

glória imorredoura dourará nos céus teus destinos!

Trocam-se assim pelo dia eterno efêmeros dias

À luta pois com braço forte, e no fundo do peito

gravado o nome do Senhor que governa o universo”!

Assim falando envia o filho à empresa gloriosa.

Dá-lhe quatro dezenas de companheiros bem equipados,

manda soltar ao vento as velas, e à divina clemência

roga auspiciar as primeiras estréias do jovem.

De pronto ergue as âncoras a marujada valente

e em voz cadenciada puxa as amarras que vai recolhendo

em círculos. Volta proas à vaga a marulhar mar em fora,

desdobra dos altos mastros o cândido linho,

enquanto o vento, bojando as velas, as cordas estira.

O Norte se abate sobre o mar, o casco impelindo

e abaulando as velas; voa a lisa proa, cortando

o pego espumante, roçando apenas o dorso das ondas.

Ora aqui, ora além fundeia nos litorais rumorosos.

Só se abranda o rondo do oceano enraivado,

quando a Ursa Maior o bafeja com ventos propícios

e a nau, vencida muitas milhas, ferra os diversos

portos dos cristãos. Muitos logo aí se oferecem

ao intrépido chefe para sócios da empresa e da sorte.

Vai pois o jovem brioso escoltado de cem companheiros

ansiosos por domar com as armas a altivez do selvagem.

Já no termo da rota, e perto das aldeias dos brancos,

(continua...)

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