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#Contos#Literatura Brasileira

Conversão de um avaro

Por Machado de Assis (1878)

Outro incidente foi haver-lhe morrido insolvável o único devedor que ele tinha — um devedor de seiscentos mil-réis, com juros. Esta notícia poupou a Gil Gomes um jantar, tal foi a mágoa que o acometeu. Ele perguntava a si mesmo se era lícito aos devedores morrer sem liquidar as contas, e se os céus tinham tanta crueldade que levassem um pecador deixando uma dívida. Esta dor foi tão grande como a primeira, posto devesse ser maior; porquanto, Gil Gomes, em vários negócios que tinha tido com o devedor finado, havia-lhe colhido aos poucos a importância da dívida extinta pela morte; idéia que de algum modo o consolou e lhe fez mais tolerável a ceia.

Estava, portanto, D. Rufina, se não esquecida, ao menos adormecida na memória do colchoeiro, quando este uma noite recebeu um bilhetinho da mulher de José Borges. Pedia-lhe a megera que ele fosse lá jantar no próximo sábado, aniversário natalício da filha do casal. Este bilhete foi levado pelo próprio pai da moça.

— Podemos contar contigo? disse este, logo que o viu acabar de ler o bilhete. — Eu sei! talvez...

— Não há talvez, nem meio talvez. É festa íntima, só parentes, dois amigos, um dos quais és tu... Senhoras, há só as de casa, a comadre Miquelina, madrinha de Mafalda, e a prima Rufina... Não sei se a conheces?

— Tua prima?... Conheço! acudiu o colchoeiro expelindo faíscas dos olhos. Não te lembras que ela passou a última noite que estive em tua casa? Até jogamos a bisca... — É verdade! Não me lembrava!

— Boa senhora...

— Oh! é uma pérola! Ora, espera... agora me lembro que ela, ainda há poucos dias, esteve lá e falou em ti. Perguntou-me como estavas... É uma senhora de truz!... — Pareceu-me...

— Vamos ao que importa, podemos contar contigo?

Gil Gomes interiormente tinha capitulado; queria declará-lo, mas por modo que não parecesse esquisito. Fez um gesto com as sobrancelhas, apertou a ponta do nariz, olhando para a carta e murmurou:

— Pois,... sim... talvez...

— Talvez, não quero! Há de ser por força.

— És um diabo! Pois bem, vou.

José Borges apertou-lhe muito a mão, sentou-se, contou-lhe duas anedotas; e o colchoeiro, tocado subitamente da suspeita de que o primo da viúva quisesse pedir-lhe dinheiro, entrou a cochilar. José Borges saiu e foi levar à casa a notícia de que Gil Gomes compareceria à festa. Chegou como a Providência, fazendo suspender de cima da cabeça da filha uma chuva de ralhos com que a mãe castigava uma das infinitas indiscrições da pequena. A sra. D. Ana não se alegrou logo, mas abrandou, ouviu a notícia, expectorou ainda seis ou sete adjetivos cruéis, por fim calou-se. José Borges, que, por medida de prudência, estava sempre do lado da mulher, disse solenemente à filha que se retirasse, o que era servir ao mesmo tempo à filha e à mãe. — Então ele vem? disse D. Ana quando o temporal começou a amainar. — Vem, e o resto...

— Parece-te?

— Eu creio...

No dia aprazado compareceu em casa de José Borges a gente convidada, os parentes, a comadre e os dois amigos. Entre os parentes havia um primo, pálido, esguio e magro, que nutria em relação a Mafalda uma paixão, correspondida pelo pai. Esse primo tinha três prédios. Mafalda dizia gostar muito dele; e se, na verdade, os olhos fossem sempre o espelho do coração, o coração da moça derretia-se pelo primo, porque os olhos eram dois globos de neve tocados pelo sol. O que a moça dizia no coração era que o primo não passava de uma figura de presepe; não obstante, autorizava-o a pedi-la nesse dia ao sr. José Borges.

Por esse motivo entrou o jovem Inácio duas horas mais cedo que os outros, mas entrou somente. Falou, é verdade, mas falou só de coisas gerais. Três vezes investiu com o pai da namorada para pedir-lha, três vezes a palavra morreu-lhe nos lábios. Inácio era tímido; a figura circunspecta de José Borges, os olhos terríveis da sra. D. Ana e até os modos ríspidos da namorada, tudo lhe metia medo e fazia perder a última gota de sangue. Os convidados entraram sem que houvesse exposto ao tio suas pretensões. Custou-lhe o silêncio um repelão da namorada; repelão curto, a que sucedeu um sorriso animador, porque a moça compreendia facilmente que um noivo, ainda que seja Inácio, não se pesca sem alguma paciência. Vingar-se-ia depois do casamento.

Pelas quatro horas e meia entrou o sr. Gil Gomes. Quando ele apareceu à porta, José Borges esfregou os olhos como para certificar-se que não era sonho, e que efetivamente o colchoeiro ali lhe entrava pela sala. Pois quê! Onde, quando, de que modo, em que circunstâncias Gil Gomes calçara nunca luvas? Trazia um par de luvas — é verdade que de lã grossa —, mas enfim luvas, que na opinião dele eram inutilidades. Foi a única despesa séria que fez; mas fê-la. José Borges, durante um quarto de hora, ainda nutria a esperança de que o colchoeiro lhe trouxesse um presente para a filha. Um dia de anos! Mas a esperança morreu depressa: o colchoeiro era oposto à tradição dos presentes de anos; era um revolucionário.

A viúva Soares fez a sua entrada na sala (já estava na casa desde as duas horas), poucos minutos depois de ali chegar Gil Gomes. Este sentiu no corredor um farfalhar de vestido e um pisar grosso, que lhe contundiu o coração. Era ela, não podia ser outra. Rufina entrou majestosa; fosse acaso ou propósito, os primeiros olhos que fitou foram os dele.

(continua...)

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