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#Peças de teatro#Literatura Brasileira

As Forças Caudinas

Por Machado de Assis (1877)

É um homem incapaz de amar... Não pode haver maior indiferença para o amor... Em resumo, prefere a um amor... o quê? Um voltarete.

EMÍLIA

Disse-te isso?

TITO

E repito. Mas note bem, não é por elas, é por mim. Acredito que todas as mulheres sejam credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada.

EMÍLIA

Se não é vaidade, é doença.

TITO

Há de me perdoar, mas eu creio que não é doença nem vaidade. É natureza: uns aborrecem as laranjas, outros aborrecem os amores; agora se o aborrecimento vem por causa das cascas, não sei; o que é certo é que é assim.

EMÍLIA

(a Margarida)

É ferino!

TITO

Ferino, eu? Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura... Dói-me, deveras, que eu não possa estar na linha dos outros homens, e não seja, como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? A culpa não é minha.

SEABRA

Anda lá, o tempo há de mudar.

TITO

Mas quando? Tenho vinte e nove feitos!

EMÍLIA

Já, vinte e nove?

TITO

Completei-os pela Páscoa.

EMÍLIA

Não parece.

TITO

São os seus bons olhos...

UM CORREIO

(ao fundo)

Jornais da corte! (Seabra vai tomar os jornais. Vai-se o correio)

SEABRA

Notícias do paquete.

CORONEL

Notícias do paquete? Faz-me favor de um? (Seabra dá-lhe um jornal)

SEABRA

Queres ler, Tito?

TITO

Já li. Mas olha, deixa-me ir tirar estas botas e mandar chamar o meu criado.

SEABRA

Vamos. Dispensam-nos por um instante?

EMÍLIA

Pois não!

SEABRA

Vamos.

TITO

Não tardo nada. (entram os dois em casa. O Coronel lê as notícias com grandes gestos de espanto)

EMÍLIA

Coronel, ao lado da casa há um caramanchãozinho, muito próprio para leitura...

CORONEL

Perdão, minha senhora, eu bem sei que faço mal, mas é que realmente o paquete trouxe notícias gravíssimas.

EMÍLIA

No caramanchão! no caramanchão!

CORONEL

Hão de perdoar, com licença... (a Emília) Não vai sem mim?

EMÍLIA

Conto com a sua obsequiosidade.

CORONEL

Pois não! (sai)

Cena IV

MARGARIDA, EMÍLIA

MARGARIDA

Quando te deixará este eterno namorado?

EMÍLIA

Eu sei lá! Mas, afinal de contas, não é mau homem. Tem aquela mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.

MARGARIDA

Enfim, se não passa da declaração semanal...

EMÍLIA

Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infalível para a rua e um realejo menos mau dentro de casa. Já me contou umas cinqüenta vezes a batalha em que ganhou o posto de coronel. Todo o seu desejo, diz ele, é ver-se comigo em São Petersburgo. Quando me fala nisto, se é à noite, e é quase sempre à noite, mando vir o chá, excelente meio de aplacar-lhe os ardores amorosos. Gosta do chá que se péla! Gosta tanto como de mim! Mas aquela do urso branco? E se realmente mandou vir um urso? MARGARIDA

Aceita.

EMÍLIA

Pois eu hei de sustentar um urso? Não me faltava mais nada.

MARGARIDA

Quer-me parecer que acabas por te apaixonar...

EMÍLIA

Por quem? Pelo urso?

MARGARIDA

Não; pelo coronel.

EMÍLIA

Deixa-te disso... Ah! mas o original... o amigo de teu marido? Que me dizes do vaidoso? Não se apaixona!

MARGARIDA

Talvez seja sincero...

EMÍLIA

Não acredito. Pareces criança! Diz aquilo dos dentes para fora...

MARGARIDA

É verdade que não tenho maior conhecimento dele...

EMÍLIA

Quanto a mim, pareceu-me não ser estranha aquela cara... mas não me lembro!

MARGARIDA

Parece ser sincero... mas dizer aquilo é já atrevimento.

EMÍLIA

Está claro...

MARGARIDA

De que te ris?

EMÍLIA

Lembra-me um do mesmo gênero que este... Foi já há tempos. Andava sempre a gabar se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos da China: admirava as e nada mais. Coitado! Caiu em' menos de um mês. Margarida, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos... depois do que desprezei-o.

MARGARIDA

Que fizeste?

EMÍLIA

Ah! não sei o que fiz. Fiz o que todas fazemos. Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um orgulhoso.

MARGARIDA

Bem feito!

EMÍLIA

Não era menos do que este. Mas falemos de coisas sérias... Recebi as folhas francesas de modas...

MARGARIDA

Que há de novo?

EMÍLIA

Muita coisa. Amanhã tas mandarei. Repara em um novo corte de mangas. É lindíssimo. Já mandei encomendas para a corte. Em artigos de passeio há fartura e do melhor.

MARGARIDA

Para mim quase que é inútil mandar.

EMÍLIA

Por quê?

MARGARIDA

Quase nunca saio de casa.

EMÍLIA

Nem ao menos irás jantar comigo no dia de ano bom?

MARGARIDA

Oh! com toda a certeza!

EMÍLIA

Pois vai... Ah! irá o homem? O Sr. Tito?

MARGARIDA

Se estiver cá... e quiseres...

EMÍLIA

Pois que vá, não faz mal... Saberei contê-lo... Creio que não será sempre tão... incivil. Nem sei como podes ficar com esse sangue-frio! A mim faz-me mal aos nervos!

MARGARIDA

É-me indiferente.

EMÍLIA

Mas a injúria ao sexo... não te indigna?

MARGARIDA

Pouco.

EMÍLIA

És feliz.

MARGARIDA

(continua...)

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