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#Contos#Literatura Brasileira

A Mulher Pálida

Por Machado de Assis (1881)

Apesar desta recusa e de todas as outras, Máximo conservava a esperança de triunfar enfim da resistência de Eulália, e não a conservava senão porque a paixão era verdadeira e forte, nutrida de si mesma, e irritada por um sentimento de amor próprio ofendido. O orgulho do rapaz sentia-se humilhado, e, para perdoar, exigia a completa obediência. Imagine-se, portanto, o que seriam as noites dele, no quartinho da rua da Misericórdia, após os desdéns de cada dia.

Na véspera do dia em que o major Bento veio de Iguaçu comunicar ao sobrinho a morte e a herança do padrinho, Máximo reuniu todas as forças e deu batalha campal. Vestiu nesse dia um paletó à moda, umas calças talhadas por mão de mestre, deu-se ao luxo de um cabeleireiro, retesou o princípio de um bigode mal espesso, coligiu nos olhos toda a soma da eletricidade que tinha no organismo, e foi para a Rua dos Arcos. Um colega de ano, confidente dos primeiros dias do namoro, costumava a fazer do nome da rua uma triste aproximação histórica e militar. — Quando sais tu da ponte d’Arcole? — Esta chufa sem graça nem misericórdia doía ao pobre sobrinho do major Bento, como se fosse uma punhalada, mas não o dizia, para não confessar tudo; apesar das primeiras confidências, Máximo era um solitário.

Foi; declarou-se formalmente, Eulália recusou formalmente, mas sem desdém, apenas fria. Máximo voltou para casa abatido e passou uma noite de todos os diabos. Há fortes razões para crer que não almoçou nesse dia, além de três ou quatro xícaras de café. Café e cigarros. Máximo fumou uma quantidade incrível de cigarros. Os vendedores de tabaco certamente contam com as paixões infelizes, as esperas de entrevistas, e outras hipóteses em que o cigarro é confidente obrigado.

Tal era, em resumo, a vida anterior de Máximo, e tal foi a causa da tristeza com que pôde resistir às alegrias de uma herança inesperada — e duas vezes inesperada, pois não contava com a morte, e menos ainda com o testamento do padrinho. — Vivam os defuntos! Esta exclamação, com que recebera a notícia do major Bento, não trazia o alvoroço próprio de um herdeiro; a nota era forçada demais. O major Bento não soube nada daquela paixão secreta. Ao jantar, via-o de quando em quando ficar calado e sombrio, com os olhos fitos na mesa, a fazer bolas de miolo de pão. — Tu tens alguma coisa, Máximo? perguntava-lhe.

Máximo estremecia, e procurava sorrir um pouco.

— Não tenho nada.

— Estás assim... um pouco... pensativo...

— Ah! é a lição de amanhã.

— Homem, isto de estudos não deve ir ao ponto de fazer adoecer a gente. Livro faz a cara amarela. Você precisa de distrair-se, não ficar metido naquele buraco da Rua da Misericórdia, sem ar nem luz, agarrado aos livros...

Máximo aproveitava estes sermões do tio, e voava outra vez à Rua dos Arcos, isto é, às bolas de miolo de pão e aos olhos fitos na mesa. Num desses esquecimentos, e enquanto o tio despia uma costeleta de porco, Máximo disse em voz alta:

— Justo.

— O que é? perguntou o major.

— Nada.

— Você está falando só, rapaz? Hum? aqui há coisa. Hão de ver as italianas do teatro. Máximo sorriu, e não explicou ao tio por que motivo lhe saíra aquela palavra da boca, uma palavra seca, nua, vaga, susceptível de mil aplicações. Era um juízo? uma resolução?

III

Máximo teve uma idéia singular: experimentar se Eulália, rebelde ao estudante pobre, não o seria ao herdeiro rico. Nessa mesma noite foi à Rua dos Arcos. Ao entrar, disse-lhe o sr. Alcântara:

— Chega a propósito; temos aqui umas moças que ainda não ouviram o Suspiro ao luar. Máximo não se fez de rogado; era poeta; supunha-se grande poeta; em todo caso recitava bem, com certas inflexões langorosas, umas quedas da voz e uns olhos cheios de morte e de vida. Abotoou o paletó com uma intenção chateaubriânica mas o paletó recusou-se a intenções estrangeiras e literárias. Era um prosaico paletó nacional, da Rua do Hospício nº... A mão ao peito corrigiu um pouco a rebeldia do vestuário; e esta circunstância persuadiu a uma das moças de fora que o jovem estudante não era tão desprezível como lhe havia dito Eulália. E foi assim que os versos começaram a brotar-lhe da boca — a adejar-lhe, que é melhor verbo para o nosso caso.

— Bravo! bravo! diziam os ouvintes, a cada estrofe.

Depois do Suspiro ao luar, veio o Devaneio, obra nebulosa e deliciosa ao mesmo tempo, e ainda o Colo de neve, até que o Máximo anunciou uns versos inéditos, compostos de fresco, poucos minutos antes de sair de casa. Imaginem! Todos os ouvidos afiaram-se para tão gulosa especiaria literária. E quando ele anunciou que a nova poesia denominava-se Uma cabana e teu amor — houve um geral murmúrio de admiração. Máximo preparou-se; tornou a inserir a mão entre o colete e o paletó, e fitou os olhos em Eulália.

— Forte tolo! disse a moça consigo.

(continua...)

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