Por Machado de Assis (1887)
Se um condor, segurando D. Joana em suas garras possantes, subisse com ela até perto do sol, de lá a despenhasse à terra, menor seria a queda do que a que lhe produziu a última palavra de João Barbosa. A razão da queda não era, na verdade, aceitável, porquanto nem ela até então sonhara para si a honra de desposar o amo, nem este, nas poucas palavras que lhe dissera antes, lhe fizera crer claramente tal coisa. Mas o demônio da cobiça produz maravilhas dessas, e a imaginação da caseira via as coisas mais longe de que elas podiam ir. Creu um instante que o opulento septuagenário a destinava para sua esposa, e forjou logo um mundo de esperanças e realidades que o sopro de uma só palavra dissolveu e dispersou no ar.
— Lucinda! repetiu ela quando pôde haver de novo o uso da voz. Quem é essa D. Lucinda?
— Um dos anjos do céu enviado pelo Senhor, a fim de fazer a minha felicidade na terra. — Está caçoando! disse D. Joana atando-se a um fragmento de esperança. — Quem dera que fosse caçoada! replicou João Barbosa. Se tal fosse, continuaria eu a viver tranqüilo, sem conhecer a suprema ventura, é certo, mas também sem padecer abalos de coração...
— Então é certo... —
Certíssimo.
D. Joana estava pálida.
João Barbosa continuou:
— Não pense que é alguma menina de quinze anos; é uma senhora feita; tem seus trinta e dois feitos; é viúva; boa família...
O panegírico da noiva continuou, mas D. Joana já não ouvia nada. posto nunca meditasse em fazer-se mulher de João Barbosa via claramente que a resolução deste viria prejudicá la: nada disse e ficou triste. O septuagenário, quando expandiu toda a alma em elogios à pessoa que escolhera para ocupar o lugar da esposa morta há tão longos anos, reparou na tristeza de D. Joana e apressou-se a animá-la.
— Que tristeza é essa, D. Joana? disse ele. Isto não altera nada a sua posição. Eu já agora não a deixo; há de ter aqui a sua casa até que Deus a leve para si. — Quem sabe? suspirou ela.
João Barbosa fez-lhe os seus mais vivos protestos, e tratou de vestir-se para sair. Saiu, e dirigiu-se da Rua da Ajuda, onde morava, para a dos Arcos, onde morava a dama de seus pensamentos, futura esposa e dona de sua casa.
D. Lucinda G... tinha trinta e quatro anos para trinta e seis, mas parecia ter mais, tão severo era o rosto, e tão de matrona os modos. Mas a gravidade ocultava um grande trabalho interior, uma luta dos meios que eram escassos, com os desejos, que eram infinitos.
Viúva desde os vinte e oito anos, de um oficial de marinha, com quem se casara aos dezessete para fazer a vontade aos pais, D. Lucinda não vivera nunca segundo as ambições secretas de seu espírito. Ela amava a vida suntuosa, e apenas tinha com que passar modestamente; cobiçava as grandezas sociais e teve de contentar-se com uma posição medíocre. Tinha alguns parentes, cuja posição e meios eram iguais aos seus, e não podiam portanto dar-lhe quanto ela desejava. Vivia sem esperança nem consolação. Um dia, porém, surgiu no horizonte a vela salvadora de João Barbosa. Apresentado à viúva do oficial de marinha, em uma loja da Rua do Ouvidor, ficou tão cativo de suas maneiras e das graças que lhe sobreviviam, tão cativo que pediu a honra de travar relações mais estreitas. D. Lucinda era mulher, isto é, adivinhou o que se passara no coração do septuagenário, antes mesmo que este desse acordo de si. Uma esperança iluminou o coração da viúva; aceitou-a como um presente do céu.
Tal foi a origem do amor de João Barbosa.
Rápido foi o namoro, se namoro podia haver entre os dois viúvos. João Barbosa, apesar de seus cabedais, que o faziam noivo singularmente aceitável, não se atrevia a dizer à dama de seus pensamentos tudo o que lhe tumultuava no coração.
Ela ajudou-o.
Um dia, achando-se ele embebido a olhar para ela, D. Lucinda perguntou-lhe graciosamente se nunca a tinha visto.
— Vi-a há muito.
— Como assim?
— Não sei... balbuciou João Barbosa.
D. Lucinda suspirou.
João Barbosa suspirou também.
No dia seguinte, a viúva disse a João Barbosa que dentro de pouco tempo se despediria dele. João Barbosa pensou cair da cadeira abaixo.
— Retira-se da corte?
— Vou para o Norte.
— Tem lá parentes?
— Um.
João Barbosa refletiu alguns instantes. Ela espreitou a reflexão com uma curiosidade de cão rafeiro.
— Não há de ir! exclamou o velho daí a pouco.
— Não?
— Não.
— Como assim?
João Barbosa abafou uma pontada reumática, ergueu-se, curvou-se diante de D. Lucinda e pediu-lhe a mão. A viúva não corou; mas, posto esperasse aquilo mesmo, estremeceu de júbilo.
— Que me responde? perguntou ele.
— Recuso.
— Recusa!
— Oh! com muita dor do meu coração, mas recuso!
João Barbosa tornou a sentar-se; estava pálido.
— Não é possível! disse ele.
— Mas por quê?
— Por que... por que, infelizmente, o senhor é rico.
— Que tem?
— Seus parentes dirão que eu lhe armei uma cilada para enriquecer... — Meus parentes! Dois biltres, que não valem a mínima atenção! Que tem que digam isso?
— Tem tudo. Além disso...
— Que mais?
(continua...)
ASSIS, Machado de. A melhor das noivas. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1877.