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#Contos#Literatura Brasileira

A Pianista

Por Machado de Assis (1886)

— Possuo uma fortuna redonda que pretendo deixar aos meus dois filhos, se eles forem dignos de mim e da minha fortuna. Tenho um nome que, se se não recomenda por uma linha ininterrompida de avós preclaros, todavia pertence a um homem que mereceu a confiança do rei dos tempos coloniais e foi tratado sempre com distinção pelos fidalgos do seu tempo. Tudo isto impõe aos meus filhos uma discrição e um respeito de si mesmo, única tábua de salvação da honra e da fortuna. Creio que me expliquei e me compreendeu.

Tomás estava aturdido. As palavras do pai eram grego para ele. Olhou fixamente para Tibério Valença, e quando este com um gesto de patrício romano mandou-o embora, Tomás deixou escapar estas palavras em tom humilde e suplicante: — Explique-se, meu pai; não o compreendo.

— Não compreende?

— Não.

Os olhos de Tibério Valença faiscavam. Parecia-lhe que tinha falado claro, não querendo sobretudo falar mais claro, e Tomás, sem procurar a oportunidade daquelas observações,

perguntava-lhe o sentido das suas palavras, no tom da mais sincera surpresa. Era preciso dar a Tomás a explicação pedida.

Tibério Valença continuou

— As explicações que lhe tenho a dar são mui resumidas. Quem lhe deu o direito de me andar namorando a filha de um rábula?

— Não compreendo ainda, disse Tomás.

— Não compreende?

— Quem é a filha do rábula?

— É essa pianista, cuja modéstia todos são unânimes em celebrar, mas que eu descubro agora ser apenas uma rede que ela arma para apanhar um casamento rico. Tomás compreendeu enfim de que se tratava. Tudo estava descoberto. Não compreendeu nem como nem desde quando, mas compreendeu que o seu amor, tão cuidadosamente velado, já não era segredo.

Todavia, ao lado da surpresa que lhe causaram as palavras do pai, sentiu um desgosto pela insinuação brutal de que vinha acompanhada a explicação: e, sem responder nada, levantou-se, curvou a cabeça e encaminhou-se para a porta.

Tibério Valença fê-lo parar dizendo:

— Então que é isso?

— Meu pai...

— Retirava-se sem mais nem menos? Que me diz em resposta às minhas observações? Veja lá. Ou a pianista sem a fortuna, ou a fortuna sem a pianista: é escolher. Eu não ajuntei dinheiro nem o criei com tanto trabalho para realizar os projetos atrevidos de uma mulher de pouco mais ou menos...

— Meu pai, se o que me retivesse na casa paterna fosse simplesmente a fortuna, minha escolha estava feita: o amor de uma mulher honesta bastava-me para amparar minha vida: eu saberei trabalhar por ela. Mas eu sei que acompanhando essa moça perco a afeição de meu pai, e prefiro perder a mulher a perder o pai: fico.

Esta resposta de Tomás desconcertou Tibério Valença. O pobre homem passou a mão pela cabeça, fechou os olhos, franziu a testa, e depois de dois minutos, disse, levantando se:

— Pois sim, de um ou de outro modo, estimo que fique. Poupo-lhe um arrependimento. E fez um gesto a Tomás para que saísse. Tomás saiu, de cabeça baixa, e dirigiu-se para o seu quarto, onde ficou encerrado até o dia seguinte.

* * *

No dia seguinte, na ocasião em que Malvina ia sair para dar as suas lições, recebeu um bilhete de Tibério Valença. O pai de Tomás dava o ensino de Elisa por acabado e mandava-lhe o saldo de contas.

Malvina não compreendeu esta despedida tão positiva e tão humilhante. A que podia atribuí-la? Em vão indagou se a memória lhe apresentava um fato que pudesse justificar ou explicar o bilhete, e não achou.

Resolveu ir à casa de Tibério Valença e ouvir da própria boca dele as causas que faziam dispensar tão bruscamente as suas lições à menina Elisa.

Tibério Valença não estava em casa. Estava só Elisa. Tomás estava, mas encerrara-se no quarto, de onde só saíra à hora do almoço por instâncias do pai.

Elisa recebeu a pianista com certa frieza que bem se via ser estudada. O coração pedia lhe outra coisa.

À primeira reclamação de Malvina acerca do estranho bilhete que recebera, Elisa respondeu que não sabia. Mas tão mal fingiu a ignorância, tão difícil e doloroso lhe foi a resposta, que Malvina, compreendendo que alguma coisa havia no fundo com que não queria contrariá-la, pediu positivamente a Elisa que o dissesse, prometendo nada referir. Elisa disse à pianista que o amor de Tomás por ela estava descoberto, e que o pai levava a mal esse amor, tendo lançado mão do meio da despedida para afastá-la da casa e da

convivência de Tomás.

Malvina, que amava sincera e apaixonadamente o irmão de Elisa, chorou ao ouvir esta notícia.

Mas as lágrimas que faziam? O ato estava consumado; a despedida estava feita; só havia uma coisa a fazer: sair e não pôr mais os pés na casa de Tibério Valença. Foi o que Malvina resolveu fazer.

Levantou-se e despediu-se de Elisa.

Esta, que, apesar de tudo, tinha um fundo de afeição pela pianista, perguntou-lhe se não ficava mal com ela.

— Mal por quê? perguntou a pianista. Não, não fico.

E saiu enxugando as lágrimas.

* * *

Estava desfeita a situação que podia continuar a avassalar o coração de Tomás. O pai não parou, e procedeu, no ponto de vista em que se colocava, com uma lógica cruel. Tratou primeiramente de afastar o filho da corte por alguns meses, de maneira que a ação do tempo pudesse apagar no coração e na memória do rapaz o amor e a imagem de Malvina.

(continua...)

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