Por José de Anchieta (1563)
numa estrada de glória que teus vindouros sigam,
para que Cristo expulse o tirano infernal, das terras do Sul
e nelas implante os eu reinado eterno!
LIVRO 1
As glórias do Pai celeste e sua força divina
teu nome, ó Cristo Rei, e teus feitos gloriosos
começarei a cantar. Num arrojo gigante,
empreenderei a celebrar em versos tuas magnas empresas.
Pois há pouco tua força descerrou uma aurora
por entre a escuridão das regiões brasileiras,
que o úmido Sul encharca com furiosas rajadas.
Esse vento impele nimbos e arma tremendas borrascas
nos altos mares, e cobre com véus de névoas os campos;
fustigando com frio a nudeza das gentes.
Já os astros que orvalharam o mundo oprimido
brilham de luz mais fulgente, e o sol conduz o seu carro
no límpido espaço e, com novos raios, do céu afugenta
nuvens densas, dissipa névoas e seca o solo embebido
de longas chuvas e, todo-luz em seu disco brilhante
enche de claridade as trevas do mundo.
Tu, ó Jesus, ó clara luz do firmamento sereno,
ó fulgor sem ocaso, ó imagem do brilho paterno,
ilumina-me a mente cega, aclara-me a alma
com esplêndidos lampejos. Tu és a fonte ubertosa
donde, em torrentes, se inebriam os habitantes celestes.
Fecunda meu coração de copioso orvalho e derrama
sobre mim fontes vitais, ondas de vida:
Inunda meu peito árido com teus raios divinos:
Assim cantarei os prodígios que teu braço potente
há pouco operou em favor da gente brasileira,
quando fez raiar, rasgando as trevas do inferno,
na arcada celeste, esplendoroso arrebol.
Envolta, há séculos, no horror da escuridão idolátrica,
houve nas terras do Sul uma nação que dobrara a cabeça
ao jugo do tirano infernal, e levava uma vida
vazia de luz divina. Imersa na mais triste miséria,
soberba, desenfreada, cruel, atroz, sanguinária,
mestra em trespassar a vítima com a seta ligeira,
mais feroz do que o tigre, mais voraz que o lobo,
mais assanhada que o lebréu, mais audaz que o leão,
saciava o ávido ventre com carnes humanas.
Por muito tempo tramou emboscadas: seguia,
no seu viver de feras, o exemplo do rei dos infernos,
que por primeiro trouxe a morte ao mundo, enganando
nossos primeiros pais. Dilacerava os corpos de muitos,
com atrozes tormentos, e, embriagada de furor e soberba
ia enlutando os povos cristãos com mortes freqüentes.
Mas um dia o pai onipotente volveu os olhares
dos reinos da luz à noite das regiões brasileiras,
às terras que suavam, em borbotões, sangue humano.
Então mandou-lhes um heróis das plagas do Norte,
um heróis que vingasse os crimes nefandos,
que banisse as discórdias, freiasse o assassínio,
bárbaro e contínuo, acabasse com as guerras horrendas,
abrandasse os peitos ferozes e não sofresse impassível
cevar-se em sangue de irmãos queixadas humanas.
E já trezentos e doze lustros o tempo volvia.
depois que o Criador dos astros, feito homem,
saíra do seio da Virgem Maria impoluta,
iluminado de esplêndidos fulgores a terra,
sepultada, há séculos, no negror do pecado.
Eis que, liberta dos perigos do mar e de há muito esperada,
uma esquadra fundeia na baía a que todos os Santos
legaram o nome. Trazia, salvo das fauces do oceano,
um singular herói, de extraordinária coragem,
Mem, que do sangue de nobres antepassados
e de seiva ilustre de longa ascendência
herdara o sobrenome de Sá. Superiores aos anos,
ornam-lhe o rosto barbas brancas e majestosas:
alegres as feições, sombreadas de senil gravidade,
vivos os olhos, másculo o arcabouço do corpo,
frescas ainda, como de moço, as forças de adulto.
Muito mais excelente é a alma: pois lha poliram
vasta ciência, com a experiência longa do mundo,
e a arte da palavra bela. Arraigado no seio
traz um amor de Deus, santo, filial, verdadeiro
e a fé de Cristo jamais desmentida. No peito,
incendiado pelo sopro divino, ferve-lhe o zelo
de arrancar as almas brasílicas às cadeias do inferno.
Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! quanto bem trarás a seus povos
abandonados! com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!
Mas muitas lágrimas doridas a primeira refrega
custar-te-á. Nela tombará um filho querido
varado de setas, e tingirá as praias de sangue
inda jovem, lançando às auras o tênue sopro da vida.
Tu porém leva sempre ante os olhos a glória
do Pai celeste: nem males nem a desgraça te dobrem!
Para sempre a morte ser-lhe-á mãe da vida
com a bela alma acesa no amor da fé verdadeira
arrostará a morte que o sublimará à mansão da beleza.
Ainda as brônzeas proas não tinham ferrado
o litoral. Depois dos trabalhos do mar, muitos e vários,
deixaram a costa africana, zona que o sol esbraseia.
Ainda para lá, o céu adverso e as correntes marítimas
os retornam com fúria aos fustigos do vento:
enquanto ferozes guerras e cruéis injustiças,
causa de tantas dores, esperam a energia do chefe.
Lá ao longe, cultivam terra feraz uns poucos colonos,
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.