Por Machado de Assis (1878)
— Eu gosto do que é belo, respondeu Gil Gomes sentenciosamente. A viúva ia jantar. Era uma boa perspectiva de tarde e noite de palestra e conversação. Gil Gomes já agradecia ao céu a doença, que lhe dera ocasião de encontrar tamanhas perfeições.
Rufina era muito agradável na conversa e pareceu simpatizar desde logo com o convalescente, fato em que as outras pessoas não pareceram reparar. — Mas já está bom de todo? dizia ela ao colchoeiro.
— Estava quase bom; agora estou perfeito, respondeu ele com certo trejeito de olhos, que a viúva fingiu não ver.
— Meu primo é um bom amigo, disse ela.
— Oh! é uma pérola! Minha moléstia era pouca coisa; mas ele lá foi à casa, pediu, instou, fez tudo para que eu viesse tratar-me em casa dele, dizendo que eram precisos cuidados de família. Vim; em boa hora vim; estou são e re-são.
Desta vez foi Rufina quem fez um trejeito com os olhos. Gil Gomes, que não esperava por ele, sentiu cair-lhe a baba.
O jantar foi uma delícia, a noite outra delícia. Gil Gomes sentia-se transportado a todos os céus possíveis e impossíveis. Ele prolongou quanto pôde a noite, propôs uma bisca de quatro e teve meio de fazer com que Rufina fosse sua parceira só pelo gosto de lhe piscar o olho, quando tinha na mão o sete ou o ás.
Foi adiante.
Num lance difícil, em que a parceira hesitava se pegaria na vaza com a bisca de trunfo, Gil Gomes, vendo que ela não levantava os olhos, e conseguintemente não podendo fazer-lhe o sinal de costume, tocou-lhe no pé com o pé.
Rufina não recuou o pé; compreendeu, atirou a bisca na mesa. E os dois pés ficaram juntos alguns segundos. Repentinamente, a viúva, parecendo que só então dera pelo atrevimento ou liberdade do parceiro, recuou o pé e ficou muito séria. Gil Gomes olhou vexado para ela; mas a viúva não lhe recebeu o olhar. No fim, sim; ao despedir-se daí a uma hora é que Rufina fez as pazes com o colchoeiro apertando-lhe muito a mão, o que o fez estremecer todo.
A noite foi cruel para o colchoeiro, ou antes deliciosa e cruel, ao mesmo tempo, porque sonhou com a viúva de princípio até o fim. O primeiro sonho foi bom: imaginava-se que passeava com ela e mais a família toda em um jardim e que a viúva lhe dera flores, sorrisos e beliscões. Mas o segundo sonho foi mau: sonhou que ela lhe enterrava um punhal. Desse pesadelo passou a melhores fantasias, e a noite correu toda entre imaginações diversas. A última, porém, sendo a melhor, foi a pior de todas: sonhou que estava casado com Rufina, e de tão belo sonho caiu na realidade do celibato. O celibato! Gil Gomes começou a pensar seriamente nesse estado que já lhe durava muitos anos, e perguntou aos céus e à terra, se tinha direito de casar. Esta pergunta foi respondida antes do almoço.
— Não! disse ele consigo; não devo casar nunca... Aquilo foi uma fantasia de uma hora. Leve o diabo a viúva e o resto. Ajuntar uns cobres menos maus para os dar a uma senhora que os desfará em pouco tempo... Nada! nada!
Almoçou tranqüilo; e despediu-se dos donos da casa com muitas manifestações de agradecimento.
— Agora não esqueça o número de nossa casa, já que se pilhou curado, disse a filha de José Borges.
O pai corou até os olhos, enquanto a mãe punia a indiscrição da filha com um beliscão que lhe fez ver as estrelas.
— Salta lá para dentro! disse a boa senhora.
Gil Gomes fingiu não ouvir nem ver nada. Apertou a mão dos amigos, prometeu-lhes uma eterna gratidão e saiu.
Seria faltar à verdade o dizer que Gil Gomes não pensou mais na viúva Rufina. Pensou; mas procurou vencer-se. Durou a luta uma semana. Ao fim desse tempo teve ímpeto de ir passar-lhe pela porta, mas receou, envergonhou-se.
— Nada! é preciso esquecer aquilo!
Quinze dias depois do encontro da viúva, Gil Gomes parecia ter efetivamente esquecido a viúva. Para isso contribuíram alguns acidentes. O mais importante deles foi o caso de um sobrinho que passava a vida a trabalhar quanto podia e numa bela noite foi recrutado em plena Rua dos Ciganos. Gil Gomes não amava ninguém neste mundo, nem no outro; mas devia certas obrigações ao finado pai do sobrinho; e, ao menos por decoro, não pôde recusar ir vê-lo, quando recebeu a notícia do desastre do rapaz. Pede a justiça que se diga que ele procurou durante dois dias retirar o sobrinho do exército que o esperava. Não lhe foi possível. Restava dar-lhe um substituto, e o recruta, quando viu perdidas todas as esperanças, insinuou esse recurso derradeiro. O olhar com que Gil Gomes respondeu à insinuação gelou todo o sangue que havia nas veias do moço. Esse olhar parecia dizer lhe: — Um substituto! dinheiro! sou algum pródigo? Não é mais do que abrir os cordões à bolsa e deixar cair o que se custou a ganhar? Alma perversa, que espírito mau te meteu na cabeça esse pensamento de dissolução?
(continua...)
ASSIS, Machado de. Conversão de um avaro. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1878.