Por Machado de Assis (1865)
Meu marido, que não ousava retorquir, calou-se com ar de vencido, e adiantando-se um pouco à frente do camarote percorreu com binóculo as linhas dos poucos camarotes fronteiros em que havia gente.
Eu recuei a minha cadeira, e, encostada à divisão do camarote, olhava para o corredor vendo a gente que passava.
No corredor, exatamente em frente à porta do nosso camarote, estava um sujeito encostado, fumando e com os olhos fitos em mim. Não reparei ao princípio, mas a insistência obrigou-me a isso. Olhei para ele a ver se era algum conhecido nosso que esperava ser descoberto a fim de vir então cumprimentar-nos. A intimidade podia explicar este brinco. Mas não conheci.
Depois de alguns segundos, vendo que ele não tirava os olhos de mim, desviei os meus e cravei-os no pano da boca e na platéia.
Meu marido, tendo acabado o exame dos camarotes, deu-me o binóculo e sentou-se ao fundo diante de mim.
Trocamos algumas palavras.
No fim de um quarto de hora a orquestra começou os prelúdios para o segundo ato. Levantei-me, meu marido aproximou a cadeira para a frente, e nesse ínterim lancei um olhar furtivo para o corredor.
O homem estava lá.
Disse a meu marido que fechasse a porta.
Começou o segundo ato.
Então, por um espírito de curiosidade, procurei ver se o meu observador entrava para as cadeiras. Queria conhecê-lo melhor no meio da multidão.
Mas, ou porque não entrasse, ou porque eu não tivesse reparado bem, o que é certo é que o não vi.
Correu o segundo ato mais aborrecido do que o primeiro.
No intervalo recuei de novo a cadeira, e meu marido, a pretexto de que fazia calor, abriu a porta do camarote.
Lancei um olhar para o corredor.
Não vi ninguém; mas daí a poucos minutos chegou o mesmo indivíduo, colocando-se no mesmo lugar, e fitou em mim os mesmos olhos impertinentes.
Somos todas vaidosas da nossa beleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire. É por isso que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a corte mais ou menos arriscada de um homem. Há, porém, uma maneira de fazê-la que nos irrita e nos assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos por perigosa. É o que se dava naquele caso.
O meu admirador insistia de modo tal que me levava a um dilema: ou ele era vítima de uma paixão louca, ou possuía a audácia mais desfaçada. Em qualquer dos casos não era conveniente que eu animasse as suas adorações.
Fiz estas reflexões enquanto decorria o tempo do intervalo. Ia começar o terceiro ato. Esperei que o mudo perseguidor se retirasse e disse a meu marido:
- Vamos?
- Ah!
- Tenho sono simplesmente; mas o espetáculo está magnífico. Meu marido ousou exprimir um sofisma.
- Se está magnífico como te faz sono?
Não lhe dei resposta.
Saímos.
No corredor encontramos a família do Azevedo que voltava de uma visita a um camarote conhecido. Demorei-me um pouco para abraçar as senhoras. Disse-lhes que tinha uma dor de cabeça e que me retirava por isso.
Chegamos à porta da Rua dos Ciganos.
Aí esperei o carro por alguns minutos.
Quem me havia de aparecer ali, encostado ao portal fronteiro? O misterioso.
Enraiveci.
Cobri o rosto o mais que pude com o meu capuz e esperei o carro, que chegou logo.
O misterioso lá ficou tão insensível e tão mudo como o portal a que estava encostado.
Durante a viagem a idéia daquele incidente não me saiu da cabeça. Fui despertada na minha distração quando o carro parou à porta da casa, em Mata-cavalos.
Fiquei envergonhada de mim mesma e decidi não pensar mais no que se havia passado.
Mas acreditarás tu, Carlota? Dormi meia hora mais tarde do que supunha, tanto a minha imaginação teimava em reproduzir o corredor, o portal, e o meu admirador platônico.
No dia seguinte pensei menos. No fim de oito dias tinha-me varrido do espírito aquela cena, e eu dava graças a Deus por haver-me salvo de uma preocupação que podia ser-me fatal.
Quis acompanhar o auxílio divino, resolvendo não ir ao teatro durante algum tempo.
Sujeitei-me à vida íntima e limitei-me à distração das reuniões à noite.
Entretanto estava próximo o dia dos anos da tua filhinha. Lembrei-me que para tomar parte na tua festa de família, tinha começado um mês antes um trabalhozinho. Cumpria rematá-lo.
Uma quinta-feira de manhã mandei vir os preparos da obra e ia continuá-la, quando descobri dentre uma meada de lã um invólucro azul fechando uma carta.
Estranhei aquilo. A carta não tinha indicação. Estava colada e parecia esperar que a abrisse a pessoa a quem era endereçada. Quem seria? Seria meu marido? Acostumada a abrir todas as cartas que lhe eram dirigidas, não hesitei. Rompi o invólucro e descobri o papel cor-de-rosa que vinha dentro.
Dizia a carta:
(continua...)
ASSIS, Machado de. Confissões de uma Viúva Moça. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1865.