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#Contos#Literatura Brasileira

A Mulher Pálida

Por Machado de Assis (1881)

O major aceitou. Máximo vestiu-se depressa, e, enquanto se vestia, falava das coisas de Iguaçu e da família. Pela conversa sabemos que a família é pobre, sem influência nem esperança. A mãe do estudante, irmã do major, tinha um pequeno sítio, que mal lhe dava para comer. O major exercia um emprego subalterno, e nem sequer tinha o gosto de ser verdadeiramente major. Chamavam-lhe assim, porque dois anos antes, em 1854, disse se que ele ia ser nomeado major da Guarda Nacional. Pura invenção, que muita gente acreditou realidade; e visto que lhe deram desde logo o título, repararam com ele o esquecimento do governo.

— Agora, juro-lhe que vosmecê há de ser major de verdade, dizia-lhe Máximo pondo na cabeça o chapéu de pêlo de lebre, depois de o escovar com muita minuciosidade. — Homem, você quer que lhe diga? Isto de política já me não importa. Afinal, é tudo o mesmo...

— Mas há de ser major.

— Não digo que não, mas...

— Mas?

— Enfim, não digo que não.

Máximo abriu a porta e saíram. Ressoaram os passos de ambos no corredor mal alumiado. De um quarto ouviu-se uma cantarola, de outro um monólogo, de outro um tossir longo e cansado.

— É um asmático, disse o estudante ao tio, que punha o pé no primeiro degrau da escada para descer.

— Diabo de casa tão escura, disse ele.

— Arranjarei outra com luz e jardins, redargüiu o estudante.

E dando-lhe o braço, desceram à rua.

II

Naturalmente a leitora notou a impressão de tristeza do estudante, no meio da alegria que lhe trouxe o tio Bento. Não é provável que um herdeiro, na ocasião em que se lhe anuncia a herança, tenha outros sentimentos que não sejam de regozijo; daí uma conclusão da leitora — uma suspeita ao menos — suspeita ou conclusão que a leitora terá formulado nestes termos:

— O Máximo padece do fígado.

Engano! O Máximo não padece do fígado; goza até uma saúde de ferro. A causa secreta da tristeza súbita do Máximo, por mais inverossímil que pareça, é esta: — O rapaz amava uma galante moça de dezoito anos, moradora na Rua dos Arcos, e amava sem ventura. Desde dois meses fora apresentado em casa do sr. Alcântara, à Rua dos Arcos. Era o pai de Eulália, que é a moça em questão. O sr. Alcântara não era rico, exercia um emprego mediano no Tesouro, e vivia com certa economia e discrição; era ainda casado e tinha só duas filhas, a Eulália, e outra, que não passava de sete anos. Era um bom homem, muito inteligente, que se afeiçoou desde logo ao Máximo, e que, se o consultassem, não diria outra coisa senão que o aceitava para genro.

Tal não era a opinião de Eulália. Gostava de conversar com ele — não muito —, ouvia-lhe as graças, porque ele era gracioso, tinha repentes felizes; mas só isso. No dia em que o nosso Máximo se atreveu a interrogar os olhos de Eulália, esta não lhe respondeu coisa nenhuma, antes supôs que fora engano seu. Da segunda vez não havia dúvida; era positivo que o rapaz gostava dela e a interrogava. Eulália não pode ter-se que não comentasse o gesto do rapaz, no dia seguinte, com umas primas.

— Ora vejam!

— Mas que tem? aventurou uma das primas.

— Que tem? Não gosto dele; parece que é razão bastante. Realmente, há pessoas a quem não se pode dar um pouco de confiança. Só porque conversou um pouco comigo já pensa que é motivo para cair de namoro. Ora não vê!

Quando no dia seguinte, Máximo chegou à casa do sr. Alcântara, foi recebido com frieza; entendeu que não era correspondido, mas nem por isso desanimou. Sua opinião é que as mulheres não eram mais duras do que as pedras, e entretanto a persistência da água vencia as pedras. Além deste ponto de doutrina, havia uma razão mais forte: ele amava deveras. Cada dia vinha fortalecer a paixão do moço, a ponto de lhe parecer inadmissível outra coisa que não fosse o casamento, e próximo; não sabia como seria próximo o casamento de um estudante sem dinheiro com uma dama, que o desdenhava; mas o desejo ocupa-se tão pouco das coisas impossíveis!

Eulália, honra lhe seja, tratou de desenganar as esperanças do estudante, por todos os modos, com o gesto e com a palavra; falava-lhe pouco, e às vezes mal. Não olhava para ele, ou olhava de relance, sem demora nem expressão. Não aplaudia, como outrora, os versos que ele ia ler em casa do pai, menos ainda lhe pedia que recitasse outros, como as primas; estas sempre se lembravam de um Devaneio, um Suspiro ao luar, Teus olhos, Ela, Minha vida por um olhar, e outros pecados de igual peso, que o leitor pode comprar hoje por seiscentos réis, em brochura, na rua de S. José nº...., ou por trezentos réis, sem o frontispício. Eulália ouvia todas as belas estrofes compostas especialmente para ela, como se fossem uma página de S. Tomás de Aquino.

— Vou arriscar uma carta, disse um dia o rapaz, ao fechar a porta do quarto, da rua da Misericórdia.

Efetivamente entregou-lhe uma carta alguns dias depois, à saída, quando ela já não podia recusá-la. Saiu precipitadamente; Eulália ficou com o papel na mão, mas devolveu-lho no dia seguinte.

(continua...)

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