Por Machado de Assis (1886)
Esta admiração que se traduziu por fatos era efetivamente sincera, e até morrer nunca Basílio deixou de ser o que sempre foi.
Tibério Valença foi educado nestas tradições. O pai inspirou-lhe as mesmas idéias e as mesmas simpatias. Com elas cresceu, crescendo-lhes entretanto outras idéias que o andar do tempo lhe foi inspirando. Imaginou que a longa e tradicional afeição de sua família pelas famílias afidalgadas dava-lhe um direito de penetrar no círculo fechado dos velhos brasões, e nesse sentido tratou de educar os filhos e avisar o mundo. Tibério Valença não era lógico neste procedimento. Se não queria admitir em sua família um indivíduo que na sua opinião estava abaixo dela, como pretendia entrar nas famílias nobres de que ele se achava evidentemente muito mais baixo? Isto, que saltava aos olhos de qualquer, não era compreendido por Tibério Valença, a quem a vaidade de ver misturar o sangue vermelho das suas veias com o sangue azul das veias fidalgas era para ele o único e exclusivo cuidado.
Finalmente o tempo trouxe as necessárias modificações às pretensões nobiliárias de Tibério Valença, e em 1850 já não exigia uma linha de avós puros e incontestáveis, exigia simplesmente uma fortuna regular.
Eu não me atrevo a dizer o que penso destas preocupações de um homem que a natureza fizera pai. Indico-as simplesmente. E acrescento que Tibério Valença cuidava destes arranjos dos filhos como cuidava do arranjo de umas fábricas que possuía. Eram para ele a mesma operação.
Ora, apesar de toda a vigilância, o filho de Tibério Valença, Tomás Valença, não comungou com as idéias do pai, nem assinou os seus projetos secretos. Era moço, recebia a influência de outras idéias e de outros tempos, e podia recebê-la em virtude da liberdade plena que gozava e da companhia que escolheu. Elisa Valença, sua irmã, não estava, talvez, no mesmo caso, e muitas vezes teve de comprimir os impulsos do coração para não contrariar as idéias acanhadas que Tibério Valença lhe introduzira na cabeça. Mas fossem ambos com as suas idéias ou não fossem absolutamente, era o que Tibério Valença não cuidava de saber. Ele tinha a respeito da paternidade umas idéias especiais; entendia que estava na sua mão regular, não só o futuro, o que era justo, mas ainda o coração dos seus filhos. Nisto enganava-se Tibério Valença.
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Malvina ensinava piano a Elisa. Ali, como nas outras casas, era estimada e respeitada. Havia já três meses que contava a filha de Tibério Valença entre as suas discípulas e já a família Valença prestava-lhe um culto de simpatia e afeição.
A afeição de Elisa por ela foi mesmo muito longe. A discípula confiava à professora os segredos mais íntimos do seu coração, e para isso era levada pela confiança que lhe inspirava a mocidade e os modos sérios de Malvina.
Elisa não tinha mãe nem irmãs. A pianista era a única pessoa do seu sexo com quem a moça tinha ocasião de conversar mais freqüentemente.
Assistia às lições de piano o filho de Tibério Valença. Da conversa ao namoro, do namoro ao amor decidido não mediou muito tempo. Um dia Tomás levantou-se da cama com a convicção de que amava Malvina. A beleza, a castidade da moça obravam este milagre. Malvina, que até então se conservara isenta de paixões, não pôde resistir a esta. Amou perdidamente o rapaz.
Elisa entrava no amor de ambos como confidente. Estimava o irmão, estimava a professora, e esta estima dupla fez esquecer-lhe por algum tempo os preconceitos inspirados por seu pai.
Mas o amor tem o grande inconveniente de não guardar a discrição necessária para que os estranhos não percebam. Quando dois olhares andam a falar entre si todo o mundo fica aniquilado para os olhos que os desferem; parece-lhes que têm o direito e a necessidade de viverem de si e por si.
Ora, um dia em que Tibério Valença voltou mais cedo, e a pianista demorou a lição até mais tarde, foi obrigado o sisudo pai a assistir aos progressos de sua filha. Tentado pelo que ouviu Elisa tocar, exigiu mais, e mais, e mais, até que veio notícia de que o jantar estava na mesa. Tibério Valença convidou a moça a jantar, e esta aceitou. Foi para o fim do jantar que Tibério Valença descobriu os olhares menos indiferentes que se trocavam entre Malvina e Tomás.
Apanhando um olhar por acaso não deixou de prestar atenção mais séria aos outros, e com tanta infelicidade para os dois namorados, que desde então não perdeu um só. Quando se levantou da mesa era outro homem, ou antes era o mesmo homem, o verdadeiro Tibério, um Tibério indignado e já desonrado só com os preliminares de um amor que existia.
Despediu a moça com alguma incivilidade, e retirando-se para o seu quarto, mandou chamar Tomás. Este acudiu pressuroso ao chamado do pai, sem cuidar, nem por sombras, do que se ia tratar.
— Sente-se, disse Tibério Valença.
Tomás sentou-se.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A pianista. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, n. 9-10, set.-out. 1866. (Publicado em folhetins, assinado por J.J.).