Por José de Anchieta (1563)
que a ti, ó Patriarca cultivador da parreira,
dirigira outrora, quando, refluindo da terra,
as ondas do mar tornaram ao seio do abismo,
e o solo do colono reapareceu à vazante das águas:
“Sujeitas as plagas brasílicas! que o terror e o tremor
que inspiras, invada os povos cruéis, que rompendo alianças
contra a lei natural, matam e espedaçam os homens,
à maneira de feras.” Também a seus ouvidos soava
a voz de Cristo: “Força-os a entrar em meu santuário!
que de povos diversos a minha casa transborde!”
Assim se expulsou a paixão de comer carne humana,
a sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
e a raiz primeira e causa de todos os males,
a obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,
para glória e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
afastam as mãos os que há pouco no sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos.
Há pouco a febre do impuro lhes devora as entranhas:
imersos no lodaçal, aí rebolavam o fétido corpo,
preso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna,
vinculada pelo laço do matrimônio sagrado
que lhe guarda sem mancha o pudor prometido.
Para que lembrar os cantos que outrora entoavam
em suas bebedeiras? os gritos com que atroavam os ares
medonhamente? as cores com que pintavam os membros?
as penas variegadas com que enfeitavam os corpos?
A beber, vira-os a aurora do seu róseo carro,
e a tarde ao cerrar o dia nos umbrais do horizonte!
e a noite negra ao rolar dos altos cumes celestes
e a nova amanhã ao despertar sob a força dos raios:
já o belo sol, nascido neste segundo dia, engolfara
nas ondas azuis seus corcéis, e eles ainda
a atufar de vinho os abismos do ventre.
Que espetáculo de sujidões, que visão de torpezas!
Que obsceno os gestos dos homens, que impudicos meneios
os das mulheres que oferecem as lascivas bebidas!
Fartam de vinho o ventre e, cheio, tudo vomitam,
e bebem de novo e cheios aos vômito tornam..
Um vomita, outro apanha na cuia o vômito e o bebe.
Espetáculo horrível! aí se cantavam os feitos antigos
e as maldades criminosas dos seus antepassados,
e feroz se erguia o ardor da guerra e do sangue,
e fervia a paixão de despedaçar corpos humanos,
e lançar em vasos novos os membros feitos em postas,
pô-los a assar ao braseiro e espetar em caniços
os pedaços cortados em pequeninos. O desejo malvado
de todos os crimes, sopitado e pouco a pouco envelhado,
despertava e rejuvenescia ao ardor desses vinhos.
Agora, tudo é silêncio! nenhum rumor se levanta
das casas em confusão; cessou a loucura, e o descanso
tudo cobre delicioso. Tal qual sob o céu agitado
por tenebrosos trovões e varrido de ventos furiosos,
Incha o mar, erguem-se as ondas, e os rolos das vagas
atirando-se contra os rochedos rouquejam de espuma;
e, quando os ventos pousam, calam-se e na lisura dos mares
ao sopro do zéfiro, as ondas de repente se amansam.
Já não ousas agora servir-te de teus artifícios,
perverso feiticeiro, entre povos que seguem
a doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosas
esfregar membros doentes , nem, com lábios imundos
chupar as partes do corpo que os frios terríveis
enregelaram, nem as vísceras que ardem de febre,
nem as lentas podagras nem os braços inchados.
Já não enganarás com tuas artes os pobres enfermos ,
que muito creram, coitados! nas mentiras do inferno.
Não mais mostrarás ao doente palhas e fios compridos
astuciosamente
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.