Por Machado de Assis (1888)
Não sei se tenho mais alguma cousa que dizer. Creio que não. A questão chinesa está absolutamente esgotada; tão esgotada que tendo eu anunciado por circular manuscrita, que daria um prêmio de conto de réis a quem me apresentasse um argumento novo, quer a favor, quer contra os chins, recebi carta de um só concorrente, dizendo-me que ainda havia um argumento científico, e era este: "A criação animal decresce por este modo: — o homem, o chim, o chimpanzé..." Como vêem, é apenas um calembour; e se não houvesse no Evangelho e em Camões, era certo que eu quebrava a cara do autor; limitei-me a guardar o dinheiro no bolso.
Boas noites.
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[18 novembro]
BONS DIAS!
Agora acabou-se! Já se não pode contar um caso, meio trágico em casa de família, que não digam logo vinte vozes:
— Já sei, outra Mme. Torpille!
— Perdão, minha senhora, eu vi o que lhe estou contando. O homem não tinha pés nem cabeça... Mas tinha uma cruz latina no peito.
— Isso não sei, pode ser. A senhora sabe se trago também alguma cruz latina ao peito'? Pois saiba que sim. . . Olhe, a cruz latina também figurou agora na revolução de rapazes em Pernambuco; a diferença é que não era no peito que eles a levavam mas às costas. Por falar em latim, sabem que Cícero...
Aqui não houve mais retê-las; todas voaram, umas para as janelas. Outras para os pianos, outras para dentro; fiquei só, peguei no chapéu e vim ter com os mous leitores, que são sempre os que pagam as favas.
E, prosseguindo, digo que o velho Cícero escreveu uma cousa tão certa, que até eu. que não sei latim, só por vê-la traduzida em sueco entendi logo o que vinha a ser, e é isto: Grata populo est tabella. . . Em português: "O voto secreto agrada ao povo, porque lhe dá força para dissimular o pensamento e olhar com firmeza para os outros".
Ora bem, este voto secreto, que me é tão grato, quer o nosso ilustre Senador Candido de Oliveira arrancá lo ao eleitor, no projeto eleitoral que apresentou ao Senado. Note-se que foi justamente por ser secreto o voto, que eu, embora conservador, votei em S. Ex.' para a lista tríplice. Não gostei da chapa do meu partido, e disse comigo: - Não, senhor; voto no Candido, no Afonso e no Alvim . Quando mais tarde o Cruz Machado (Visconde do Serro Frio) me falou na eleição, declarei- lhe que ainda uma vez levara às urnas a lista da nossa gente. Era mentira; mas para isso mesmo é que vale o voto secreto.
S. Ex.a quer o voto público. Há de ser escrito o nome do candidato em um livro com a assinatura do eleitor (art. 3.° § 1.° ) . Concordo que este modo dá certa hombridade e franqueza, virtudes indispensáveis. E fora de dúvida que, com o voto público. o caixeiro vota no patrão, o inquilino no dono da casa (salvo se o adversário lhe oferecer outra mais barata. o que é ainda uma virtude, a economia). o fiel dos feitos vota no escrivão, os empregados bancários votam no gerente. e assim por diante. Também se pode votar nos adversários. Mas, enfim, nem todos são aptos para a virtude. Há muita gente capaz de falar em particular de um sujeito, e ir jantar publicamente com ele. São temperamentos.
Se as nossas eleições fossem sempre impuras, vá que viesse aquela disposição no projeto; mas é raro que a ordem e a liberdade se não dêem as mãos diante das urnas. Uma eleição entre nós pode ser aborrecida, graças ao sistema de chamadas nominais, que obriga a gente e não arredar pé da seção em que vota, mas são em geral boas. E depois, se o voto secreto já fez algum bem neste nosso pequeno mundo, por que aboli-lo?
Bem sei tudo o que se pode de bem e de mal acerca do voto secreto. Em teoria, realmente, o público é melhor. A questão é que não permite o trabalhinho oculto, e, mais que tudo, obsta a que a gente vote contra um candidato, e vá jantar com e]e à tarde, por ocasião da filarmônica e dos discursos.
Voto público e muito público — foi o que aquela linda Duquesa de Cavendish alcançou, estando a cabalar por um parente parou dentro do carro à porta de um açougueiro e pediu-lhe o voto. O açougueiro, que era do partido oposto, disse-lhe brincando:
—Votarei, se Vossa Senhoria me der um beijo.
E a duquesa, como toda gente sabe, estendeu-lhe os lábios, e ele depositou ali um beijinho, que já agora é melhor julgar que experimentar. Neste sentido, todos somos açougueiros. Tais votos são mais que públicos. Complete S. EX.a o seu projeto, estabelecendo que as candidaturas só poderão ser trabalhadas por mulheres, amigas do candidato, devendo começar pelas mais bonitas, e está abolido o voto secreto. O mais que pode acontecer, é a gente faltar a nove ou dez pessoas, se a vaga for só uma; mas creia S. EX a que não há beijo perdido.
Tinha outra cousa que dizer acerca do projeto ou antes, que perguntar a S. Ex.a, mas o tempo urge.
Há uma disposição, porém, que não posso deixar de agradecer desde já; é a abolição do 2.° escrutínio, saindo deputado com os votos que tiver; maioria relativa, em suma. Tem um distrito 1.900 eleitores inscritos; comparecem apenas 104; eu obtenho 20 votos' o meu adversário 19, e os restantes espalham-se por diferentes nomes. Entro na Câmara nos braços de vinte pessoas. Há famílias mais numerosas, mas muito menos úteis.
Boas noites
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[27 dezembro]
BONS DIAS!
(continua...)
ASSIS, Machado de. Balas de estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1888–1889.