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#Crônicas#Literatura Brasileira

Balas de Estalo

Por Machado de Assis (1883)

Se a luta pela vida é uma lei verdadeira e só um louco poderá negá-lo, como há de lutar um molhadista em terra de Molhadistas? Sim, se este nosso Rio de Janeiro tivesse apenas uns vinte molhadistas, é claro que venderiam os mais puros vinhos do mundo,—e por bom preço,—o que faria enriquecer depressa, pois não os havendo mais baratos, iriam todos comprá-los a eles mesmos.

Eles, porém, são numerosos, são quase inumeráveis, e têm grandes encargos sobre si; pagam aluguéis de casa, caixeiros, impostos, pagam muita vez o pato, e hão de pagar no outro mundo os pecados que cometerem neste, e tudo isso lutando, não contra cem, mas contra milhares de rivais. Pergunto: o que é que lhes fica a um canto da gaveta? Não iremos ao ponto de exigir que eles abram um armazém só para o fim de perder. O mais que poderíamos querer é que não o abrissem; mas uma vez aberto, entram na pura fisiologia universal; e tanto melhor se a química os ajuda.

Também matar é um crime. Mas as leis sociais admitem casos em que é ilícito matar, defendendo-se um homem a si próprio. Bem, o molhadista do n ° 40, que falsifica hoje umas vinte pipas de vinho, que outra coisa fez senão defender-se a si mesmo, contra o molhadista do n.° 34 que falsificou ontem dezessete? Struggle for life, como diz o meu amigo.

Depois, façamos um pouco de filosofia Pangloss, penetremos nas intenções da Providência. Se com drogas químicas se pode chegar a uma aparência de vinho, não parece que este resultado é legítimo, lógico e natural? Acaso a natureza é uma escola de crimes? E dado mesmo que um tal vinho seja danoso à saúde pública, não pode acontecer que seja útil à virtude pública, levando os homens a abater-se? E, porventura, a virtude merece menos que a saúde? Não são ambas a mesma coisa, com a diferença que a virtude é ainda superior? Não entrará tudo isso nos cálculos do céu?

Eu bem sei que era melhor não vender nada, nem vinho puro, nem vinho falsificado, e viver somente daquele produto a que se refere o meu amigo Barão de. Capanema, no Diário do Brasil de hoje: "Alguns milhões de homens livres no Brasil (escreve ele) vivem do produto da pindaíba. .." Realmente eu conheço um certo número que não vive de outra coisa. E quando o escritor acrescenta: "...pindaíba do tatu que arrancam do buraco. . ." penso que elude a alguns níqueis de mil-réis que têm saído da algibeira de todos nós.

Era melhor; mas isto mesmo pode dar lugar a falsificações. Nem todas as pindaíbas são legítimas. E a própria química finge algumas, por meio das lágrimas que são, em tais casos, química verdadeira.

Talvez por isso tudo, é que um cavalheiro, que não sei quem seja mas que more na Travessa do Maia, lembrou-se de fazer este anúncio: "Brasão de armas, composição de cartas da nobreza, árvore genealógica, todo e qualquer trabalho heráldico, em pergaminho, pintura em aquarela e dourados, letras góticas, trata-se na travessa etc."

Esse cidadão não viverá na pindaíba, nem lhe dirão que fez vinho nos fundos da fábrica. Não fez vinho, fez historia, fez gerações, à escolha, latinas ou góticas. E não se pense que é oficio de pouca renda. Na mesma case convidam-se as senhoras que se dedicam à arte de pintura e quiseram trabalhar. Se ainda acharem que há aí muita química, cito-lhes física, cito-lhes um "grande cartomante" (sic) da Rua da Imperatriz, que dá consultas das 7 às 9 da manhã. Física, e boa física.

Que querem? é preciso comer. Cartomancia, heráldica, pindaíba de tatu, ou vinhos confeccionados no fundo do armazém, tudo isso vem a dar na lei de Darwin.

[33]

[29 outubro]

JÁ tínhamos Lafaiete, ministro de Estado e presidente do Conselho, citando Molière na Câmara. Não é tudo. Para citá-lo bastam florilégios e o incomensurável Larousse, nelas o nosso ex-ministro leva o desplante ao ponto de o ler e reler. Felizmente, a indignação parlamentar e pública lavou a Câmara e o país de tão grande mancha, e podemos esperar com tranqüilidade o juízo da história.

Agora temos Taunay, em vésperas de eleição, cuidando das músicas do Padre José Maurício, e citando (custa-me dizê-lo), citando Haydn e Mozart.

Não ignoro que tudo isto de Taunay e Lafaiete, afinal de contas, são francesias de nomes e de cabeças. Ouviram dizer que em França alguns deputados lêem os clássicos, e imaginaram transportar o uso para aqui.

Não advertiram que nem todas as coisas de um país podem aclimar-se em outro. Não concluamos da pomada Lubin para o Misantropo. São coisas diferentes. Paul-Louis-Courrier, tão conhecido dos nossos homens, compondo na cadeia um opúsculo político, interrompia o trabalho para escrever à mulher que lhe mandasse uma certa frase de Beaumarchais. Segue-se daí que devemos todos ler Beaumarchais? Pelo amor de Deus!

O caso de Taunay é mais grave. Lafaiete conspurcou. é verdade, a tribuna parlamentar com um pobre diabo que, posto viva há dois séculos na memória dos homens, era, todavia, um saltimbanco ou pouco mais. Taunay levanta os braços no céu, consternado, porque as obras musicais do Padre José Maurício andam truncadas, perdidas ou quase perdidas.

(continua...)

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