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#Crônicas#Literatura Brasileira

Crônica do Viver Baiano Seiscentista

Por Gregório de Matos (1650)

Vós sois um pantufo em zancos, mais oco do que um tonel, e se estudais no burel,

entendereis de tamancos: que as ações dos homens brancos, tão brancos como Furão,

não as julga um maganão

criado em um oratório, julgador de refeitório,

que dá o nosso Guardião.

O que sabeis, Frei Garrafa, é a traça, e a maneira,

com que estafais uma Freira, dizendo, que vos estafa:

vós saís com a manga gafa do palangana, e tigela

d'ovos moles com canela, e tão mal correspondeis, que esse tempo, que a comeis, são as têmporas para ela.

Item sabeis tresladar falto de próprios conselhos

de trezentos sermões velhos um sermão para pregar:

e como entre o pontear, e cirgir obras alheias

se enxergam vossas idéias, mostrais pregando de falso,

que sendo um Frade descalço,

andais pregando de meias.

E pois vossa Reverência quis ser julgador de nora,

tenha paciência, que agora se lhe tira a residência:

e inda que a minha clemência se há com dissimulação, livre-se na relação

dos cargos, em que é culpado ser glutão como um capado,

como um bode fodinchão.


A CERTO FRADE NA VILA DE SAM FRANCISCO, A QUEM UMA MOÇA FINGINDO-SE AGRADECIDA À SEUS REPETIDOS GALANTEIOS, LHE MANDOU EM SIMULAÇÕES DE DOCE UMA PANELA DE MERDA.


Reverendo Frei Antônio se vos der venérea fome,

praza a Deus, que Deus vos tome, como vos toma o demônio:

uma purga de antimônio

devia a moça tomar,

quando houve de vos mandar

um mimo, em que dá a entender, que já vos ama, e vos quer tanto, como o seu cagar.

Fostes-vos mui de lampeiro vós, e os amigos de cela ao miolo da panela,

e achastes um camareiro:

metestes a mão primeiro,

de que vos desenganásseis,

e foi bem feito, que achásseis,

cagalhões, que então sentistes, porque aquilo, que não vistes, quis o demo, que cheirásseis.

A hora foi temerária, o caso tremendo, e atroz, e essa merda para vós

se não serve, é necessária:

se a peça é mui ordinária, eu de vós não tenho dó: e se não dizei-me: é pó

mandar-vos a ponto cru a Moça prendas do cu,

que tão vizinho é do có?

Se vos mandara primeiro o mijo num panelão,

não ficáreis vós então

mui longe do mijadeiro:

mas a um Frade malhadeiro sem correia, nem lacerda,

que não sente a sua perda, seu descrédito, ou desar,

que havia a Moça mandar,

senão merda com mais merda?

Dos cagalhões afamados diz esta plebe inimiga,

que eram de ouro de má liga

não dobrões, porém dobrados: aos Fradinhos esfamiados,

que abrindo a panela estão, daí por cabeça um dobrão, e o mais mandai-o fechar;

que por isso, e por guardar, manhã serei guardião.

Se os cagalhões são tão duros, tão gordos, tão bem dispostos, é, porque hoje foram postos, e ainda estão mal maduros:

que na enxurrada dos tais

é de crer, que abrandem mais, porque a Moça cristãmente

não quer, que quebreis um dente, mas deseja, que os comais.


O CERTO FRADE QUE GALANTEANDO DUAS SENHORAS NO CONVENTO DE ODIVELAS, LHES ENTREGOU HABITO, E MENORES PARA UM FINGIDO ENTREMEZ, E CONHECENDO O CHASCO, EM ALTA NOITE DEU EM CANTAR O MISERERE, BORRANDO, E OURINANDO TODO O PALRATÓRIO, PELO QUE A ABADESSA LHE DEU OS SEUS HÁBITOS, E SUA LANTERNA PARA SE RETIRAR À LISBOA.


Reverendo Frei Carqueja, quentárida com cordão, magano da religião,

e mariola da Igreja:

Frei Sarna, ou Frei Bertoeja,

Frei Pirtigo, que o centeio moes, e não dás receio,

Frei Burro de Lançamento, pois que sendo um Frei Jumento, és um jumento sem freio.

Tu, que nas pardas cavernas vives de um grosso saial, és carvoeiro infernal,

pois andas com saco em pernas:

lembram-te aquelas fraternas, que levaste a teu pesar, quando a Prelada Bivar

por culpa, que te cavou, de dia te desfradou

para à noite te expulsar.

Pela dentada, que Adão deu no vedado fruteiro,

de folhas fez um cueiro, e cobriu seu cordavão:

a ti o querer ser glutão

de outra maçã reservada, ao vento te pôs a ossada, mas com diferença muita, que se nu te pôs a fruta,

tu não lhe deste a dentada.

De José se diz cad'hora, que o fez um seno de chapa deixar pela honra a capa

nas mãos da amante senhora: tu na mão, que te namora, por honra, e por pundonor deixas hábito, e menor,

mas com desigual partido, que José de acometido, e tu de acometedor.

Desfradado em conclusão te vistes em couro puro, como vinho bem maduro, sendo, que és um cascarrão:

era pelo alto serão,

quando a gente às adivinhas

viu entre queixas mesquinhas na varanda um Frade andeiro saído do Limoeiro

a berrar pelas casinhas.

Como Galeno na praça apareceste ao luar

pobre, roubado do mar,

que era ver-te um mar de graça:

quando um pasma, e outro embaça; não me tenham por visão,

frade sou inda em cueiros,

tornei-me aos anos primeiros, e Bivar foi meu Jordão.

Porque luz se te não manda, tu por não dar num ferrolho,

dizem, que abriste o teu olho, que é cancela, que tresanda: chovias por uma banda, e por outra trovejavas,

viva tempestade andavas,

porque à comédia assistias, que era tramóia fingias,

e na verdade o passavas.

Ninguém há, que vitupere aquele lanço estupendo,

(continua...)

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