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#Epopeias#Literatura Brasileira

Feitos de Mem de Sá

Por José de Anchieta (1563)

erguendo a voz diante do governador: este porém, cujo peito

era sacrário de Deus, confiado no poder de Jesus,

cujo nome ansiava por tornar conhecido naquelas

bárbaras plagas, com ânimo tranqüilo e semblante sereno

responde: “Vive o Deus que criou céus, terras e mares

ante o qual tremem as abóbadas do firmamento

e as colossais muralhas do imenso universo.

Sua destra trar-nos-há auxílio a seu tempo

e livrará os cristãos de tantas desgraças.”

Assim disse e destemido põe-se a realizar seus projetos.

Vós, irmãos nossos, habitantes das etéreas moradas,

que pisais docemente o pavimento estrelado,

e dessas alturas vos interessais pelos nossos destinos,

a fim de ocuparmos um dia um trono convosco:

dizei-me, eu vos conjuro, as alegrias que desfrutastes

por todo o céu! as sinfonias de júbilos que decantastes!

as alegres melodias que desentranharam os órgãos celestes!

as notas que desferiram trombetas e clarins de vitória!

os sons maviosos que jorrou a flauta sonora!

que harmonia nas cordas da cítara! que hinos contentes

cantastes ao Pai celeste! com que salmos sentidos

exaltastes ao som da harpa as glórias de Cristo:

quando o índio começou a trocar sua ferocidade

por modos mais humanos e a conhecer o nome do Eterno!

Vós, que por um pecador que lava seus crimes

nas lágrimas do arrependimento, dais as maiores

manifestações de alegria por todo o templo celeste,

como deveis exaltar com nova harmonia

este triunfo de Deus! Começa a bárbara terra

a sacudir dos ombros o tirânico jugo do inferno.

Arrancada às trevas do escuro e lúgubre abismo,

vai receber a luz divina do Sol sem ocaso,

aprender as leis santas do Senhor Jesus Cristo,

abraçar-lhe a fé e salutares doutrinas.

Foi por vosso ministério que tão grandes milagres

se realizaram. Vós, mais velozes que os ventos,

a nossas plagas trazeis em revoadas contínuas

as paternas disposições da Providência divina.

Dizei vós as leis e a ordem que o ilustre e piedoso

governador implantou entre povos tão feros,

para afinal ser honrado nestas paragens incultas

o nome vitorioso, forte e imortal de Jesus!

De início para poder jungir esses rudes selvagens

ao jugo da lei e moldá-los pela doutrina de Cristo,

ordena que deixados recôncavos, campos, florestas,

acorram de todas as partes a um mesmo local

e aí construam novas casas, ergam novas aldeias

e comecem a deixar os antigos costumes de feras;

não vagueiem daqui e dali, como tigres, pelos cerrados,

sem moradia certa, sempre duma terra p’ra outra,

sem nunca fixar-se em aldeias estáveis.

Era de ver como logo deixaram as enfumaçadas malocas,

suas cabanas cobertas de palha e suas roças agrestes.

Acorriam de todas as partes, movido da fama

e do muito medo que do governador se espalhara;

todos se submetiam a si, suas esposas e filhos

sem ousar opor-se ou confiar em seus braços e armas.

Decidido assim a impor nova ordem, novos costumes,

o magnânimo chefe manda construir quatro aldeias

de amplo circuito, nas quais se reunam todos os índios

das tabas em derredor e onde aprendam aos poucos,

de coração já manso, as leis santas de Cristo.

E porque o ano em quatro estações se divide,

que o áureo sol percorre com sua luz fulgurante,

fecundando-o com seus raios para que férteis ressurjam

as searas e reverdeçam as veigas contentes e fartas,

e a um tempo os frutos desejados madurem:

assim Jesus, filho unigênito de Deus, com o lume

de sua divindade, aclare estes brasis, repartidos

em quatro aldeias. Roçados os tojais, revolvidos

os campos ao labutar auspicioso do arado,

fecunde ele esta gleba e enfim a esplêndida messe

pague aos lavradores os gemidos e as lágrimas

que com as sementes lançara, por anos a fio

e com o coração aos pulos, encham os celeiros vazios.

Brotam as novas moradias; o índio, nômade há pouco,

ergue seu teto que o abrigará muitos anos,

e canta, em igrejas novas, o nome de Jesus, reverente.

O pio governador impõe santas leis aos selvagens,

e, desterrando costumes e ritos dos antepassados,

vínculos que os ligavam ao tirano do inferno

e lhes enlodavam as almas de culpas horrendas,

substitui-lhes preceitos divinos que cortem abusos,

lavem os corações afeiados e os rendam ao jugo

de Cristo que, com um único aceno, rege o universo

Reconheçam primeiramente o Deus do céu e da terra,

a quem os esquadrões dos anjos e os astros celestes,

os abismos do inferno e a mole terrestre obedecem:

que o reconheçam e lhe cumpram as ordens divinas.

Cessem já as cruas guerras e as sangrentas matanças,

o bárbaro costume de espedaçar o inimigo,

dessedentar com seu sangue as fauces sequiosas,

e devorar carne humana: é só com a morte

que se pagará tal crime, sangue por sangue.

Dá força de lei civil a tudo quanto nos manda

o Criador e aos renitentes com indignação ameaça.

O terror se apossa de todos, curvam-se as frontes,

por tanto tempo rebeldes, ao jugo de Cristo.

Parecia que o próprio Deus lá das alturas celestes,

falando ao Chefe, repetia essas mesmas palavras

(continua...)

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