Por José de Anchieta (1563)
E ele que há pouco lançava valentias aos ventos
e ameaçava feroz guerras, matanças e orgias,
vê-se agrilhoado duramente e jogado
na imundície horrível de um cárcere escuro,
pagando o merecido castigo de seus crimes antigos.
Não lhe desataram os grilhões, nem daí saiu livre
senão depois que a zona oblíqua dos signos
viu o sol percorrer a todos em seu rápido carro
e passada a do Peixe reviu a constelação do Carneiro,
transpondo os altos pórticos do firmamento estrelado.
Entretanto divulgou-se pelas aldeias a nova
de que esteva em ferros Cururupeba: terror indizível
se apodera dos índios. Pasmam todos e temem
cada qual pela própria sorte: como num bando de pombas,
quando cruel gavião arrebata uma nas garras aduncas,
as outras em debandada se escondem nos ninhos:
a imagem da companheira no desastre recente
continua a assustá-las e a entristecê-las ainda.
O piedoso Mem de Sá, desejou depois disto
ver adorado o Senhor do céu, do mar e da terra
e venerado nas plagas do Sul o nome de Cristo.
Resolve impor leis aos índios que vivem quais feras
e refrear seus bárbaros costumes. Logo desterra
a antropofagia cruel: não permite mais que movidos
de gula infrene bebam o sangue fraterno,
nem mais se violem os santos direitos da mãe natureza
e as leis do Criador. Para logo o ignóbil vulgacho
a quem movia ora ambição mal inspirada
ora verdadeiro terror, pôs-se a espalhar estes rumores:
“que novo governador é este? com que direito posterga
as leis antigas e tenta impor novos costumes
novas normas de vida a indômitas gentes?
Poderá ele agora persuadir a povos selvagens
tratados de aliança? deixará a raça brasílica
de comer carne humana, banindo do seio
de seus filhos ódios cruéis e guerras antigas?
Pois se o prazer destes bárbaros, justamente nisso consiste,
atirar-se sempre em novas e ferozes batalhas,
provocar os outros à guerra em que sempre viveram,
rasgar-lhes com as unhas a carne, e piores que tigres,
fincar os dentes em lanhos palpitantes de vida:
devem agora aprender a esquecer seus furores,
criar almas meigas e corações de cordeiro?
Acaso não voltará sobre nós o feroz inimigo
todas as iras e todos os braços devastando a cidade,
se faltarem outros em que saciem a sede de sangue?
Como é possível julgar que mudem agora
costumes que se embeberam na torrente dos séculos?
Poderão os beberrões deixar de encher-se de vinhos,
de vomitar o que beberam e de beber novamente
o que vomitarão? Não celebrar novas bodas esses devassos
e renunciando às antigas não se sujar em novas torpezas?
Estes e outros costumes, herdados dos seus antepassados,
e transmitidos como direito racial, de há longo tempo,
sofrerão impunemente que lhos arranquem agora?
Quão pouco conhece o índio altivo quem assim pensa!
Quanto se engana quem tenta realizar tais projetos!
Não está longe de permitir a ruína do povo!”
Tais rumores que corriam, tais as críticas duras
que publicamente se lançavam: um só temor o de todos,
uma só preocupação, desviar o governador
dos seus intentos, dobrá-lo com rogos e súplicas,
força-lo a deixar as determinações que tomara
tão resolutamente. Vão ter com ele bem premunidos,
reunindo nesta fala o argumento de todos:
“Grande governador, a quem Dom João o terceiro
nosso felicíssimo rei entregou o governo brasílico;
por desígnio da Providência, foi-te confiado
o nosso bem, para que em boa paz a todos dirijas
e olhes pelo bem estar de todos os súditos.
Agora que abonançou a tempestade da guerra,
que leis tencionas impor a esses povos selvagens?
Proíbes aos índios as guerras? de que paz fruir poderemos
senão se guerrearem entre si, saciando a sede de sangue
com que nasceram? De que maneira julgas possível
realizar teus desejos? que deixe de comer carne humana
o bárbaro que dela gosta? Podem os tigres viver sem a presa
e os leões ferozes deixar de despedaçar os novilhos
e os lobos perdoar às mansas ovelhas ? Antes deixará a baleia
de encher de peixes o bojo, no vasto oceano,
antes deixará o gavião, em vôo audacioso librado no espaço,
de raptar tímidas aves, e a águia real de garras aduncas
de levantar às alturas em revoada a lebre cativa:
do que deixarem os brasis de devorar carnes humanas.
Eia pois! pondera teus intentos com reflexões cautelosas.
Não impeça que mutuamente se provoquem à guerra
e se matem horrendamente, e, despedaçando seus inimigos,
lhes assem a carne no rito paterno e lhe roam os ossos
à maneira de cães, celebram as festas dos seus antepassados
e não pensem em lançar contra nós os braços ferozes,
nem desafoguem em nós suas iras de brutos
e sedentos de sangue nos passem ao fio da espada
a nós, nossas esposas e filhos, conspurcando de morte
toda a cidade. Tu serás a causa de tão grandes desgraças,
tu o responsável único da irreparável ruína
e do sangue derramado. Eis que te avisamos com tempo
nós que conhecemos, de há muito, os costumes dos índios,
e lhes experimentamos de perto a índole fera.”
Assim falando, eles com acrimônia insistiam
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.