Por Machado de Assis (1877)
Não me compreendeste. Cuidas que eu deploro o que me acontece? Oh! não! Sinto-me feliz, sinto-me orgulhosa... É um destes amores que bastam por si para encher a alma de satisfação. Devo antes abençoar-te...
MARGARIDA
É uma verdadeira paixão... Mas acreditas impossível a conversão dele?
EMÍLIA
Não sei; mas seja ou não impossível, não é a conversão que eu peço; basta-me que seja menos indiferente e mais compassivo.
Cena XI
As mesmas, TITO
TITO
Deixei o Ernesto lá fora para que não ouça o que se vai passar...
MARGARIDA
O que é que se vai passar?
TITO
Uma coisa simples.
MARGARIDA
Mas, antes de tudo, não sei se sabe que uma indiferença tão completa como a sua pode ser fatal a quem é por natureza menos indiferente?
TITO
Refere-se à sua amiga? Eu corto tudo com duas palavras. (a Emília) Aceita a minha mão? (estende-lhe a mão)
EMÍLIA
(alegremente)
Oh! sim! (dá-lhe a mão)
MARGARIDA
Bravo!
TITO
Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu devia dizer: aceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um tanto original e gosto de fazer inversão em tudo.
EMÍLIA
Pois sim; mas de um ou outro modo sou feliz. Contudo, um remorso me surge na consciência. Dou-lhe uma felicidade tão completa como a recebo?
TITO
Remorso, se é sujeita aos remorsos, deve ter um, mas por motivo diverso. Minha senhora, V. Exa. está passando neste momento pelas forcas caudinas. (a Margarida) Vou contar-lhe, minha senhora, uma curiosa história. (a Emília) Fi-la sofrer, não? Ouvindo o que vou dizer concordará que eu já antes sofria e muito mais.
MARGARIDA
Temos romance?
TITO
Realidade, minha senhora, e realidade em prosa. Um dia, há já alguns anos, tive eu a felicidade de ver uma senhora, e amei-a. O amor foi tanto mais indomável quanto que me nasceu de súbito. Era então mais ardente que hoje, não conhecia muito os usos do mundo. Resolvi declarar-lhe a minha paixão e pedi-la em casamento. Tive em resposta este bilhete...
EMÍLIA
(detendo-o)
Percebo. Essa senhora fui eu. Estou humilhada; perdão!
TITO
Meu amor a perdoa; nunca deixei de amá-la. Eu estava certo de encontrá-la um dia, e procedi de modo a fazer-me o desejado. Sou mais generoso...
MARGARIDA
Escreva isto e dirão que é um romance.
TITO
A vida não é outra coisa...
MARGARIDA
Agora dê-me conta do meu marido.
TITO
Não pode tardar; dei-lhe um prazo para vir. Olhe, creio que é ele...
EMÍLIA
E o coronel também.
Cena XII
Os mesmos, CORONEL e SEABRA
SEABRA
(da porta)
É lícito o ingresso?
TITO
Entra, entra...
EMÍLIA
Vai saber de boas novidades...
SEABRA
Sim?
MARGARIDA
(baixo)
Casam-se
SEABRA
(idem)
Já sabia.
MARGARIDA
(baixo)
Era um plano da parte dele.
SEABRA
(idem)
Já sabia. Ele me disse tudo.
EMÍLIA
O que eu desejo é que jantem comigo.
SEABRA
Pois não.
CORONEL
Tenho estado à espera de dar uma boa notícia. Recebi uma carta que me dá parte de que o urso está na alfândega.
EMÍLIA
Pois vá fazer-lhe companhia.
CORONEL
O quê?
TITO
D. Emília só precisa agora de um urso: sou eu.
CORONEL
Não percebo...
EMÍLIA
Apresento-lhe o meu futuro marido.
CORONEL
(espantado)
Ah!... (caindo em si) Bom!... bom!... marido? Já sei... (à parte) Que pateta! Não compreende...
EMÍLIA
O que é?
MARGARIDA
(baixo)
Cala-te; eu tinha-lhe contado o teu plano; o pobre homem acredita nele. EMÍLIA
Ah!...
SEABRA
Afinal, sentas praça nas minhas fileiras.
TITO
(tomando a mão de Emília)
Ah! mas no posto de coronel!
(Fim da comédia.)
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877