Por Machado de Assis (1874)
Guiomar anunciava desde pequena as graças que o tempo lhe desabrochou e perfez. Era uma criaturinha galante e delicada, assaz inteligente e viva, um pouco travessa, decerto, mas muito menos do que é usual na infância. Sua mãe, depois que lhe morrera o marido, não tinha outro cuidado na terra, nem outra ambição mais, que a de vê-la prendada e feliz.
Ela mesma lhe ensinou a ler mal, como ela sabia, — e a coser e bordar, e o pouco mais que possuía de seu ofício de mulher. Guiomar não tinha dificuldade nenhuma em reter o que a mãe lhe ensinava, e com tal afinco lidava por aprender, que a viúva, — ao menos nessa parte, — sentia-se venturosa. Hás de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta simples expressão de ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo à aplicação.
A casa em que moravam era naturalmente modesta. Ali correu a infância, — mas solitária, o que é um pouco mais grave. A mãe, quando a via embebida nos jogos próprios da idade, infantilmente alegre, — mas de uma alegria que fazia mal a seus olhos de mãe, tão fundo lhe doía aquele viver, — a mãe sentia às vezes pularem-lhe as lágrimas dos olhos fora. A filha não as via, porque ela sabia escondê-las; mas adivinhava-as através da tristeza que lhe ficava no rosto. Só não adivinhava o motivo, mas bastava que fossem mágoas de sua mãe, para lhe descair também a alegria.
Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viúva, ainda mais dolorosa que a primeira. Na idade apenas de dez anos, tinha Guiomar uns desmaios de espirito, uns dias de concentração e mudez, uma seriedade, a princípio intermitente e rara, depois freqüente e prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer à mãe que eram prenúncios de que Deus a chamava para si. Hoje sabemos que não eram. Seria acaso efeito daquela vida solitária e austera, que já lhe ia afeiçoando a alma e como que apurando as forças para as pugnas da vida?
A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ela estivera a brincar no quintal da casa.
O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chácara pertencente a uma casa da vizinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir espairecer ali os olhos, já sérios e pensativos. Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente aparecer-lhe diante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que arrastavam por entre as árvores os seus vestidos, e faziam luzir aos últimos raios do sol poente as jóias que as enfeitavam. Elas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum afago; mas foram-se, e com elas os olhos da interessante pequena, que ali ficou largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memória o quadro que passara.
A noite veio, a menina recolheu-se pensativa e melancólica, sem nada explicar à solícita curiosidade da mãe. Que explicaria ela, se mal podia compreender a impressão que as coisas lhe deixavam? Mas, como a mãe entristecesse com aquilo, Guiomar domou o próprio espírito e fez-se tão jovial como nos melhores dias.
Esta era ainda outra feição da menina; tinha uma força de vontade superior aos seus anos. Com ela, e a viveza intelectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo o que a mãe lhe ensinara, e melhor ainda do que ela o sabia, desde que o tempo lhe permitiu desenvolver os primeiros elementos.
Aos treze anos ficou órfã; este fundo golpe em seu coração, foi o primeiro que ela verdadeiramente pôde sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. Já então a madrinha a fizera entrar para um colégio, onde aperfeiçoava o que sabia e onde lhe ensinavam muita coisa mais.
Vivia ainda então a filha da baronesa, uma interessante criança de treze anos, que era toda a alma e encanto de sua mãe. Guiomar visitava a casa da madrinha; a idade quase igual das duas meninas, a afeição que as ligava, a beleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os laços puramente espirituais que as uniam antes. Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda mãe; havia talvez em seu afeto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O afeto era espontâneo; o encarecimento é que seria voluntário.
Tinha a moça dezesseis anos quando passou para o colégio da tia de Estêvão, onde pareceu à baronesa se lhe poderia dar mais apurada educação. Guiomar manifestara então o desejo de ser professora.
— Não há outro recurso, disse ela à baronesa quando lhe confiou esta aspiração.
— Como assim? perguntou a madrinha.
— Não há, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor que a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se deve cumprir. A minha é... é ganhar o pão.
Estas últimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que à força. O rubor subiu-lhe às faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha.
— Guiomar! exclamou a baronesa.
— Peço-lhe uma coisa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A mão e a luva. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1874.