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#Contos#Literatura Brasileira

A Pianista

Por Machado de Assis (1886)

À tarde houve um jantar dado a alguns poucos amigos, os mais íntimos, mas jantar esplêndido, porque Tibério Valença não quis que um só ponto da festa desdissesse do resto.

Entre os convidados para o jantar veio um que informou o dono da casa de que outro convidado não vinha, por ter grande soma de trabalho a dirigir.

Era exatamente um dos mais íntimos e melhores convivas.

Tibério Valença não se deu por convencido com o recado, e resolveu escrever-lhe uma carta exigindo a presença dele no jantar e no baile.

Em virtude disto foi ao gabinete, abriu a gaveta, tirou papel e escreveu uma carta que mandou incontinenti.

Mas, no momento de guardar de novo o papel que tirara da gaveta, reparou que entre duas folhas se resvalara uma cartinha por letra de Tomás.

Estava aberta. Era uma carta, já antiga, que Tibério Valença recebera e atirara para dentro da gaveta. Foi a carta em que Tomás participava ao pai o dia do seu casamento com Malvina.

Essa carta, que em mil outras ocasiões lhe estivera debaixo dos olhos sem maior comoção, desta vez não deixou de impressioná-lo.

Abriu a carta e leu-a. Era de redação humilde e afetuosa.

Veio à mente de Tibério Valença a visita que fizera à mulher de Tomás. O quadro da vida modesta e pobre daquele jovem casal apresentou-se-lhe de novo aos olhos. Comparou esse quadro mesquinho com o quadro esplêndido que apresentava a casa dele, onde um jantar e um baile iam reunir amigos e parentes.

Depois viu a doce resignação da moça que vivia contente no meio da parcimônia, só porque tinha o amor e a felicidade do marido. Esta resignação afigurou-se-lhe um exemplo raro, tanto lhe parecia impossível sacrificar o gozo e o supérfluo às santas afeições do coração.

Enfim o neto que lhe aparecia no horizonte, e para o qual Malvina já confeccionava o enxoval, tomou mais viva e decisiva ainda a impressão de Tibério Valença. Uma espécie de remorso fez-lhe doer a consciência. A nobre moça, a quem ele tratara tão desabridamente, o filho, para quem ele fora um pai tão cruel, tinham cuidado com verdadeiro carinho o mesmo homem de quem receberam a ofensa e o desagrado. Tibério Valença refletia tudo isto passeando no gabinete. Dali ouvia o rumor dos fâmulos que preparavam o lauto jantar. Enquanto ele e os seus amigos e parentes iam apreciar os mais delicados manjares, que comeriam naquele dia Malvina e Tomás? Tibério Valença estremeceu diante desta pergunta que lhe fazia a consciência. Aqueles dois filhos que ele expelira tão desamorosamente e que com tanta generosidade lhe haviam pago não tinham naquele dia nem a milésima parte do supérfluo da casa paterna. Mas esse pouco que tivessem era, com certeza, comido em paz, na branda e doce alegria do lar doméstico.

As idéias dolorosas que assaltaram o espírito de Tibério Valença fizeram com que ele esquecesse inteiramente os convivas que se achavam nas salas.

Isto que se operava em Tibério Valença era uma nesga da natureza, ainda não tocada pelos preconceitos, e bem assim o remorso de uma ação má que havia cometido. Isto e mais a influência da felicidade de que atualmente era objeto Tibério Valença produziram o melhor resultado. O pai de Tomás tomou uma resolução definitiva; mandou aprontar o carro e saiu.

Foi direito à casa de Tomás.

Este sabia da grande festa que se preparava em casa do pai para celebrar a chegada de Elisa e seu marido.

Assim que a entrada de Tibério Valença em casa de Tomás causou a este grande expectação.

— Por aqui, meu pai?

— É verdade. Passei, entrei.

— Como está a mana?

— Está boa. Ainda não foste vê-la?

— Contava ir amanhã, que é dia livre.

— Ora, se eu lhes propusesse uma coisa...

— Ordene, meu pai.

Tibério Valença dirigiu-se a Malvina e tomou-lhe as mãos.

— Escute, disse ele. Vejo que há na sua alma grande nobreza, e se nem a riqueza, nem os antepassados ilustram o seu nome, vejo que resgata estas faltas por outras virtudes. Abrace-me como pai.

Tibério, Malvina e Tomás abraçaram-se em um só grupo.

— É preciso, acrescentou o pai, que vão hoje lá a casa. E já.

— Já? perguntou Malvina.

— Já.

Daí a meia hora apeavam os três à porta da casa de Tibério Valença. O pai arrependido apresentava aos amigos e aos parentes, aqueles dois filhos que tão cruelmente quisera excluir da comunhão da família.

Este ato de Tibério Valença veio a tempo de reparar o mal, e assegurar a paz futura dos seus velhos anos. A conduta generosa e honrada de Tomás e de Malvina valeram esta reparação.

Isto prova que a natureza pode comover a natureza, e que uma boa ação tem a faculdade muitas vezes de destruir o preconceito e restabelecer a verdade do dever. Não pareça improvável ou violenta esta mudança no espírito de Tibério. As circunstâncias favoreceram essa mudança, para a qual o principal motivo foi a resignação de Malvina e de Tomás.

(continua...)

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