Por José de Anchieta (1563)
Feitos de Mem de Sá é uma epopeia composta por José de Anchieta que exalta, em linguagem poética, as ações do governador Mem de Sá na consolidação do domínio português no Brasil. A obra narra batalhas, alianças e episódios marcantes do período colonial, destacando a visão religiosa e civilizadora que orientava o projeto jesuítico.
Epístola Dedicatória
Eis que vês, potentado supremo, quão grande façanha
realizou a força do onipotente Deus.
O indômito Brasil já seus anchos orgulhos
depôs, e tombou, rendido às tuas armas.
O que dantes, furioso, semeava ruínas e guerras,
aprecia os fatores de redentora paz.
O que dantes vivia escondido em sombrias florestas
aos templos do Senhor, já pressuroso corre.
O que há pouco, cão feroz, roía ossos humanos,
sacia com o Pão dos Anjos o coração já manso.
O que há pouco de fauces sedentas, sugava o sangue fraterno
voa a desalterar-se nos mananciais divinos.
Foi a própria Onipotência que robusteceu os teus golpes
e prostrou a teus pés as inimigas hostes
Vês como de nada vales a esses ninhos altivos de pedra
toda a estratégia das posições achadas.
Inexpugnáveis embora à força humana as ameias erguidas
pelo hábil francês no cimo dessa penha,
Aquele que rege com seu braço o universo estrelado
e pode com um aceno volvê-lo e revolvê-lo,
franqueou-te, ó vencedor, o forte de rochas horrendas
e a soberba de sua mole sob os teus pés meteu,
nem sofreu te barrassem o passo as flechas aladas
nem as balas que vomita a poderosa pólvora,
nem tão os pelouros que pelos ares arrota
com tremendo fragor o ventre do canhão.
Quando já te faltavam as forças e tua esquadra cedia
desfalcada pelo baque de muitos de teus heróis.
Quando já se acabara a pólvora que alimenta o incêndio
e que ao fogo voraz vem provocar as iras:
Jesus compadecido olhou-te das alturas celestes
e veio ele próprio a estender-te a mão.
Rendido às tuas preces, ele ouviu teus pedidos,
incutiu terror e pôs o inimigo em fuga.
Já no intimo peito podes fruir gozos nunca provados:
é a quadra formosa duma alegria nova.
Já podes exultar entre os vivas deste egrégio triunfo:
esta palma ergue-te o nome ao apogeu da glória.
Glorifica ao Senhor, que com seu braço invencível
esmagou os inimigos e seus fortins ativos.
Só a ele pertence derrubar sanguinários tiranos
calcar ao chão os maus, erguer ao céu os bons.
Aspira aos fulgores, que inundam o palácio celeste,
se é que o amor da glória teu coração enleia.
Bem sabes que o brilho fementido do mundo
foge ligeiro e leve, e se desfaz na fuga.
Como se esvai pelas fendas da jarra partida
o líquido, e baldado é procurar enchê-la.
Assim a honra fugaz, como água, flui e se escapa
por entre os dedos que segurá-la tentam.
Se te deres ao lazer silencioso de revolver em teu peito
as empresas heróicas dos generais famosos,
verás quantos triunfos varreu a lúgubre morte
para as águas imundas da infernal voragem.
É que ensoberbecidos negaram ao Senhor sempiterno,
que tudo fez no mundo, glórias que alcançaram.
No tênue respiro da vida sorveram vãos elogios
e todo o seu cuidado foi sua própria fama.
Se és prudente, pede a Deus uma única glória,
a que só vem de Deus, a verdadeira glória!
Se és prudente, rejeita os enganos do mundo que gira,
não te acorrente com seus grilhões os pés.
Com suas fraudes enleia, com a face ingênua nos mente:
e não nos deixa erguer a fronte altiva ao céu.
Depois que escalaste as árduas muralhas do forte
e a glória de teus louros refulge mais que nunca:
não te envolva em suas malhas o soberbo tirano,
e, apenas vencedor, te calque aos pés vencido.
Ouve pois as palavras que Jesus, o mestre divino
te dirige com lábios que enganar não podem:
“Se queres ser perfeito e galgar as alturas celestes,
vai, vende o que tens, e dá-o todo aos pobres!”
Vê como ele próprio, porque seus pés são ligeiros,
voa como um gigante que não afrouxa o passo:
para que, apressado, seguindo-lhe a esteira sagrada,
sacudas pesos mortos e partas livre e leve.
Se te sustarem o passo riquezas e glórias do mundo,
Jesus, que não para, te escapará dos olhos.
É certo que a soberba, com seus afãs só compra o inferno
e com pouco trabalho o humilde compra o céu!
Se pois com justo ódio desejas vencer o orgulho mundano
a Cristo atribui todas as tuas glórias!
Do fundo do coração ao Pai celeste dá graças
e rende a Jesus as merecidas honras.
Foi ele quem quis que fosses tu nas regiões brasileiras
primeiro propagador de seu bendito nome.
O primeiro a vingar os ultrajes do gentio inumano
e dobrar-lhe a cerviz às tuas ordens justas.
Ao peso do teu braço, os altivos Brasis esqueceram
seus ferozes costumes e seus sangrentos ritos.
Eia! novo ardor, ancião! extermina as maldades,
submete ao Deus eterno essas nações selvagens.
No céu te espera um trono, grande Mem; para aí te convidam
os fulgurantes templos do firmamento azul.
Aquele, cujo nomes ensinas a louvar em plagas incultas,
até aos astros levantará teu nome.
Entre laudas divinas dar-te-á eterna coroa
e o ilumina cetro de seu celeste reino.
Enquanto a fé e a lei de Deus e nome de Cristo
forem reverenciados no hemisfério austral,
os sucessores que empunharem teu bastão glorioso
seguirão tua trilha sem arredar passo.
Vive pois feliz, governando as plagas Brasílicas
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.