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#Contos#Literatura Brasileira

Casa, não casa...

Por Machado de Assis (1875)

Machado de Assis (1839–1908), mestre do conto brasileiro, explora em “Casa, Não Casa” o jogo amoroso marcado por dúvida, vaidade e ironia. A narrativa acompanha um triângulo afetivo em que aparências e ciúmes revelam ambiguidades da alma humana, num tom leve e crítico que convida à reflexão. A publicação original ocorreu em duas partes, nas edições de dezembro de 1875 e janeiro de 1876 do Jornal das Famílias.

Se alguma das minhas leitoras morasse na Rua de S.Pedro da cidade nova, há cousa de quinze anos, e estivesse à janela na noite de 16 de março, entre uma e duas horas, teria ocasião de presenciar um caso extraordinário.

Morava ali, entre a Rua Formosa e a Rua das Flores, uma moça de vinte e dous anos, bonita como todas as heroínas de romances e contos, a qual moça na sobredita noite de 16 de março, entre uma e duas horas, levantou-se da cama e a passo lento foi até à sala com uma luz na mão.

Não estando as janelas fechadas, a leitora, caso morasse defronte, veria a nossa heroína pousar a vela sobre um aparador, abrir um álbum, tirar um retrato, que não saberia se era de homem ou de mulher, mas que eu lhe afirmo ser de mulher.

Tirado o retrato do álbum, pegou a moça na vela, desceu a escada, abriu a porta da rua e saiu. A leitora ficaria naturalmente assombrada com tudo isto; mas que não diria quando a visse seguir pela rua acima, voltar a das Flores, ir até à do Conde, e parar à porta de uma casa?

Justamente à janela dessa casa estava um homem, rapaz ainda, vinte e sete anos, olhando para as estrelas e fumando um charuto.

A moça parou.

O moço espantou-se do caso, e vendo que ela parecia querer entrar, desceu a escada, com uma vela acesa e abriu a porta.

A moça entrou.

— Isabel! exclamou o rapaz deixando cair a vela no chão.

Ficaram às escuras no corredor. Felizmente trazia o moço fósforos na algibeira, acendeu outra vez a vela e fitou os olhos na recém-chegada. Isabel (tal era o seu verdadeiro nome) estendeu o retrato ao rapaz, sem dizer palavra, com os olhos fitos no ar.

O rapaz não pegou logo no retrato.

— Isabel! exclamou ele outra vez mas já com a voz sumida. A moça deixou cair o retrato no chão, voltou as costas e saiu. O dono da casa ainda mais aterrado ficou.

— Que é isto? dizia ele; estará louca?

Pôs a vela sobre um degrau da escada, saiu à rua, fechou a porta e seguiu lentamente atrás de Isabel, que foi pelo mesmo caminho até entrar em casa.

O mancebo respirou quando viu Isabel entrar na casa; mas ficou ali alguns instantes, a olhar para a porta, sem nada compreender e ansioso por que chegasse o dia. Todavia era forçoso voltar para a Rua do Conde; lançou um último olhar às janelas da casa e retirou-se.

Ao entrar em casa apanhou o retrato.

— Luísa! disse ele.

Esfregou os olhos como se duvidasse do que via, e ficou parado na escada a olhar largos minutos para o retrato.

Era preciso subir.

Subiu.

— Que quererá isto dizer? disse ele já em voz alta como se falasse a alguém. Que audácia foi essa de Isabel? Como é que uma moça, filha de família, sai assim de noite para... Mas estarei eu sonhando? Examinou o retrato, e viu que tinha nas costas as seguintes linhas: À minha querida amiga Isabel, como lembrança de eterna amizade. LUÍSA.

Júlio (era o nome do rapaz) não pôde descobrir nada por mais que parafusasse, e parafusou muito tempo, já deitado no sofá da sala, já encostado à janela.

E na verdade quem seria capaz de descobrir o mistério daquela visita a semelhante hora? Tudo parecia antes uma cena de drama ou romance tétrico, do que um ato natural da vida.

O retrato... O retrato tinha certa explicação. Júlio andava quinze dias antes a trocar cartas com o original, a formosa Luísa, moradora no Rocio Pequeno, hoje Praça Onze de Junho.

Todavia, por mais agradável que lhe fosse receber o retrato de Luísa, como admitir a maneira por que lho levaram, e a pessoa, e a hora, e as

circunstâncias?

— Sonho ou estou doudo! concluiu Júlio depois de longo tempo. E chegando à janela, acendeu outro charuto.

Nova surpresa o esperava.

Vejamos qual foi ela.

CAPÍTULO II

Não havia fumado ainda uma terça parte do charuto, quando viu dobrar a esquina um vulto de mulher, caminhando lentamente, e parar à porta da casa dele.

— Outra vez! exclamou Júlio. Quis descer logo; mas as pernas começavam a tremer-lhe. Júlio não era tipo de extrema valentia; creio até que se lhe chamarmos medroso não estaremos longe da verdade. O vulto, entretanto, estava à porta; era forçoso tirá-lo dali, a fim de evitar um escândalo.

"Desta vez, pensou ele pegando na vela, hei de interrogá-la; não a deixo sair sem me dizer o que há. Infeliz. Parece-me que está douda!" Desceu; abriu a porta.

— Luísa! exclamou.

A moça estendeu-lhe um retrato; Júlio pegou nele com ânsia e murmurou consigo: "Isabel!"

Era efetivamente o retrato da primeira moça que a segunda lhe trazia. Não será preciso dizer ou repetir que Júlio namorava também a Isabel, e a leitora compreende facilmente que, tendo ambas descoberto o segredo uma da outra, ambas foram mostrar ao namorado que estavam cientes da sua duplicidade.

Mas por que motivo tais cousas se davam assim revestidas de circunstâncias singulares e tenebrosas?

Não era mais natural mandarem-lhe os retratos dentro de uma sobrecarta?

Tais eram as reflexões que Júlio fazia, com o retrato numa das mãos e a vela na outra, enquanto já de volta entrava em casa.

(continua...)

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