Por Machado de Assis (1871)
Machado de Assis (1839–1908), mestre do Realismo brasileiro, publicou Ayres e Vergueiro em 1871, no Jornal das Famílias. O conto explora as relações entre amizade, interesse e moralidade, revelando, com ironia e sutileza, as contradições humanas e os limites entre lealdade e traição. A narrativa antecipa o estilo maduro e analítico que marcaria a fase realista do autor.
Era muito alva, cheia de corpo, assaz bonita e elegante, a esposa de Luís Vergueiro. Chamava-se Carlota. Contava 22 anos e parecia destinada a envelhecer muito tarde. Não sendo franzina, não tinha nenhuma ambição de parecer vaporosa, pelo que era dada à boa mesa, e detestava o princípio de que uma moça para parecer bonita deve comer pouco. Carlota comia sofrivelmente, mas em compensação só bebia água, uso que, na opinião do marido, era causa de se lhe não afoguearem as faces como convinha a uma beleza robusta.
Reqüestada por muitos rapazes no ano da Maioridade, deu ela a preferência ao sr. Luís Vergueiro que, posto não fosse mais bonito que os outros, tinha qualidades que o punham muito acima de todos os rivais. Destes se podia dizer que os movia a ambição; tinham geralmente pouco mais que nada; Vergueiro não era assim. Iniciava um negociozinho de fazendas que lhe ia dando esperanças de enriquecer, ao passo que a amável Carlota apenas tinha aí uns dez contos, dote feito pelo padrinho.
Caiu a escolha em Vergueiro, e o casamento foi celebrado com alguma pompa, sendo padrinhos um deputado maiorista e um coronel do tempo da revolução de Campos. Nunca houve casamento mais falado que aquele; a beleza da noiva, a multiplicidade dos rivais, a pompa da cerimônia, tudo deu que falar durante uns oito dias antes e depois, até que a vadiação do espírito público achou novo alimento.
Vergueiro alugou a casa que ficava por cima da sua loja, e para lá levou a mulher, satisfazendo assim as obrigações públicas e privadas, consorciando facilmente a bolsa e o coração. A casa era na Rua de S. José. Daí a pouco tempo comprou a casa, e isto fez dizer que o casamento, longe de lhe pôr um cravo na roda da fortuna, veio antes ajudá-lo. Tinha Vergueiro uma irmã casada no interior. Morre-lhe o marido, e a irmã veio para o Rio de Janeiro onde foi recebida pelo irmão com todas as demonstrações de afeto. As duas cunhadas simpatizaram logo uma a outra, e esta presença de uma estranha (para recém casados todos são estranhos) não alterou a felicidade doméstica do casal Vergueiro. Luísa Vergueiro não era bonita, mas tinha uma graça especial, uns modos todos seus, uma coisa que se não explica, e esse misterioso dom, essa qualidade indefinível encadeou para sempre o coração de Pedro Ayres, rapaz de trinta anos perfeitos, morador na vizinhança.
Digam-lhe lá o que pode fazer uma pobre viúva ainda moça, que apenas esteve casada dois anos. Luísa não era da massa das Artemisas. Tinha chorado o esposo, e se tivesse talento, podia escrever uma excelente biografia dele, honrosa para ambos. Mas isso era
tudo que se podia exigir dela; não possuía um túmulo no coração, possuía um ninho; e um ninho deserto é a coisa mais triste deste mundo.
Não foi Luísa insensível aos olhares requebrados de Pedro Ayres, e serei justo dizendo que ocultou quanto pôde a impressão que o moço fazia nela. Ayres pertencia àquela raça de namoradores que não abatem armas logo à primeira resistência. Insistiu nos olhares entremeados com alguns sorrisos; chegou a interrogar miudamente um moleque da casa, cuja discrição não pôde resistir a uma moeda de prata. O moleque foi além; aceitou uma carta para a viuvinha.
A viuvinha respondeu.
Daqui em diante correram as coisas com aquela celeridade natural entre dois corações que se querem, que são livres, que não podem viver um sem o outro. Carlota percebeu o namoro, mas respeitou a discrição da cunhada, que nenhuma confissão lhe fez. Vergueiro estava no extremo oposto da perspicácia humana; e além disso as suas ocupações não lhe davam tempo para perceber os namoros da irmã. Não obstante, sorriu complacentemente quando Carlota lhe disse o que sabia. — Pensas que eu ignoro isso? perguntou o marido brincando com a corrente do relógio. — Alguém te contou? perguntou a mulher.
— Ninguém me contou nada, mas para que tenho eu olhos senão para ver o que se passa à roda de mim? Sei que esse rapaz anda cá a namorar a Luísa, estou a ver em que param as coisas.
— É fácil de ver.
— Casamento, não?
— Que dúvida!
Vergueiro coçou a cabeça.
— Nesse caso, disse ele, acho bom indagar alguma coisa da vida do pretendente; pode ser algum tratante...
— Eu já indaguei tudo.
— Tu?
Carlota passou-lhe os braços à roda do pescoço.
— Eu, sim! As mulheres são curiosas; vi o Tobias entregar uma cartinha à Luísa; interroguei o Tobias, e ele disse-me que o rapaz é um moço sério e tem alguma coisa de seu.
— Tem, tem, disse Vergueiro. Que achas?
— Que os devemos casar.
— Entende-te tu com ela, e conta-me o que souberes.
— Bem.
Carlota cumpriu fielmente a ordem do marido, e Luísa nada lhe ocultou do que se passava em seu coração.
— Queres então casar com ele?
— Ele deseja isso mesmo.
— E estão calados! Parecem-me aprendizes.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Ayres e Vergueiro. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1871.