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#Contos#Literatura Brasileira

As Bodas de Luís Duarte

Por Machado de Assis (1873)

"As Bodas de Luís Duarte" é um conto de Machado de Assis (1839-1908), que integra a coletânea Histórias da Meia-Noite (1873). Publicado originalmente em folhetins no Jornal das Famílias, no Rio de Janeiro, entre junho e julho de 1873, o texto narra com ironia e agudeza de observação a celebração de um casamento na sociedade carioca do século XIX. O tema central é a sátira dos costumes burgueses, focando nas vaidades dos convidados, nas formalidades vazias e na retórica grandiloquente e artificial que permeiam os eventos sociais.

Na manhã de um sábado, 25 de abril, andava tudo em alvoroço em casa de José Lemos. Preparava-se o aparelho de jantar dos dias de festa, lavavam-se as escadas e os corredores, enchiam se os leitões e os perus para serem assados no forno da padaria defronte; tudo era movimento; alguma coisa ia acontecer nesse dia.

O arranjo da sala ficou a cargo de José Lemos. O respeitável dono da casa, trepado num banco, tratava de pregará parede duas gravuras compradas na véspera em casa do Bernasconi; uma representava a Morte de Sardanapalo; outra a Execução de Maria Stuart. Houve alguma luta entre ele e a mulher a respeito da colocação da primeira gravura. D. Beatriz achou que era indecente um grupo de homens abraçado com tantas mulheres. Além disso, não lhe pareciam próprios dois quadros fúnebres em dia de festa. José lemos, que tinha sido membro de uma sociedade literária, quando era rapaz, respondeu triunfantemente que os dois quadros eram históricos. E que a história está bem em todas as famílias. Podia acrescentar que nem todas as famílias estão bem na história; mas este trocadilho era mais lúgubre que os quadros.

D. Beatriz, com as chaves na mão, mas sem a melena desgrenhada do sonêto de Tolentino, andava literalmente da sala para a cozinha, dando ordens, apressando as escravas, tirando toalhas e guardanapos lavados e mandando fazer compras, em suma, ocupada nas mil coisas que estão a cargo de uma dona de casa, máxime num dia de tanta magnitude.

De quando em quando, chagava Dona Beatriz à escada que ia ter ao segundo andar, e gritava: – Meninas, venham almoçar!

Mas parece que as meninas não tinham pressa, porque só depois das nove horas acudiram ao oitavo chamado da mãe, já disposta a subir ao quarto das pequenas o que era verdadeiro sacrifício da parte de uma senhora tão gorda.

Eram duas moreninhas de truz as filhas do casal Lemos. Uma representava ter vinte anos, outra dezessete; ambas eram altas e um tanto refeitas. A mais velha estava um pouco pálida; a outra, coradinha e alegre, desceu cantando não sei que romance do Alcazar, então em moda.. parecia que das duas a mais feliz seria a que cantava; não era; a mais feliz era a outra que nesse dia devia ligar se pelos laços matrimoniais ao jovem Luís Duarte, com quem nutria longo e porfiado namoro.

Estava pálida por ter tido uma insônia terrível, doença de que até então não padecera nunca. Há doenças assim.

Desceram as duas pequenas, tomaram a benção à mãe, que lhes fez um rápido discurso e foram à sala para falar ao pai. José lemos, que pela sétima vez trocava a posição dos quadros, consultou as filhas sobre se era melhor que a Stuart ficasse do lado do sofá ou do lado oposto. As meninas disseram que era melhor deixá-la onde estava, e esta opinião pôs termo às dúvidas de José lemos que deu por concluída a tarefa e foi almoçar.

Além de José Lemos, sua mulher Dona Beatriz, Carlota (a noiva) e Luísa, estavam à mesa Rodrigo Lemos e o menino Antonico, filhos também do casal Lemos. Rodrigo, tinha dezoito anos e Antonico seis; o Antonico era a miniatura do Rodrigo; distinguiam-se ambos por uma notável preguiça, e nisso eram perfeitamente irmãos. Rodrigo desde as oito horas da manhã gastou o tempo em duas coisas; ler os anúncios do Jornal e ir à cozinha saber em que altura estava o almoço. Quanto ao Antonico, tinha comido às seis horas um bom prato de mingau, na forma de costume, e só se ocupou em dormir tranqüilamente até que a mucama o foi chamar.

O almoço correu sem novidade. José lemos era homem que comia calado; Rodrigo contou o enredo da comédia que vira na noite antecedente no Ginásio; e não se falou em outra coisa durante o almoço. Quando este acabou, Rodrigo levantou-se para ir fumar; e José Lemos encostando os braços na mesa perguntou se o tempo ameaçava chuva. Efetivamente o céu estava sombrio, e a Tijuca não apresentava bom aspecto.

Quando Antonico ia levantar-se, impetrada a licença, ouviu da mãe este aviso: – Olha lá, Antonico, não faças logo ao jantar o que fazes sempre que há gente de fora. – O que é que ele faz? perguntou José Lemos.

– Fica envergonhado e mete o dedo no nariz. Só os meninos tolos é que fazem isto: eu não quero semelhante coisa.

O Antonico ficou envergonhado com a reprimenda e foi para a sala lavado em lágrimas. D. Beatriz correu logo atrás para acalentar o seu Benjamin, e todos os mais se levantaram da mesa. José Lemos indagou da mulher se não faltava nenhum convite, e depois de certificar-se que estavam convidados todos os que deviam assistir à festa, foi vestir-se para sair. Imediatamente foi incumbido de várias coisas: recomendar ao cabeleireiro que viesse cedo, comprar luvas para a mulher e as filhas, avisar de novo os carros, encomendar os sorvetes e os vinhos, e outras coisas mais em que poderia ser ajudado pelo jovem Rodrigo, se este homônimo do Cid não tivesse ido dormir para descansar o almoço.

(continua...)

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