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#Contos#Literatura Brasileira

A Viúva Sobral

Por Machado de Assis (1884)

O conto "A Viúva Sobral" é uma obra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Publicado em folhetins na revista A Estação (Rio de Janeiro), em 1884, o texto utiliza a ironia para explorar as complexidades das relações amorosas e a contradição humana. A trama narra o apaixonamento de dois amigos pela mesma mulher, D. Candinha Sobral, cuja beleza se contrapõe à fama de ter um "mau gênio" capaz de "matar o marido com desgostos". Uma excelente amostra da perspicácia machadiana sobre a vaidade, a rivalidade e o mistério do desejo.

CAPÍTULO PRIMEIRO

— Explico-me.

— Mas explica-te refrescando a goela. Queres um sorvete? Vá, dois sorvetes. Traga dois sorvetes... Refresquemo-nos, que realmente o calor está insuportável. Estiveste em Petrópolis.

— Não.

— Nem eu.

— Estive no Pati do Alferes, imagina por quê?

— Não posso.

— Vou...

— Acaba.

— Vou casar.

Cesário deixou cair o queixo de assombro, enquanto o Brandão saboreava, olhando para ele, o gosto de ter dado uma novidade grossa. Vieram os sorvetes, sem que o primeiro saísse da posição em que a notícia o deixou; era evidente que não lhe dava crédito. — Casar? repetiu ele afinal, e o Brandão respondeu-lhe com a cabeça que sim, que ia casar. Não, não, é impossível.

Estou que o leitor não sente a mesma incredulidade, desde que considera que o casamento é a tela da vida, e que toda a gente casa, assim como toda a gente morre. Se alguma coisa o enche de assombro é o assombro de Cesário. Tratemos de explicá-lo em cinco ou seis linhas.

Viviam juntos esses dois rapazes desde os onze anos, e mais intimamente desde os dezesseis. Contavam agora vinte e oito. Um era empregado no comércio, outro da alfândega. Tinham uma parte da vida comum, e comuns os sentimentos. Assim é que ambos faziam do casamento a mais deplorável idéia, com ostentação, com excesso, e para afirmá-lo, viviam juntos a mesma vida solta. Não só entre eles deixara de haver segredo, mas até começava a ser impossível que o houvesse, desde que ambos davam os mesmos passos, de um modo uníssono. Começa a entender-se o espanto do Cesário. — Dá-me a tua palavra que não estás brincando?

— Conforme.

— Ah!

— Quando eu digo que vou casar, não quero dizer que tenho a dama pedida; quero dizer que o namoro está a caminho, e que desta vez é sério. Resta adivinhar quem é. — Não sei.

— E foste tu mesmo que me levaste lá.

— Eu?

— É a Sobral.

— A viúva?

— Sim, a Candinha.

— Mas...?

Brandão contou tudo ao amigo. Cerca de algumas semanas antes, Cesário levara-o à casa de um amigo do patrão, um Viegas, comerciante também, para jogar o voltarete; e ali acharam, pouco antes chegada do Norte, uma recente viúva, D. Candinha Sobral. A viúva era bonita, afável, dispondo de uns olhos que os dois concordaram em achar singulares. Os olhos, porém, eram o menos. O mais era a reputação de mau gênio que esta moça trazia. Disseram que ela matara o marido com desgostos, caprichos, exigências; que era um espírito absoluto, absorvente, capaz de deitar fogo aos quatro cantos de um império para aquecer uma xícara de chá. E, como sempre acontece, ambos acharam que, a despeito das maneiras, lia-se-lhe isso mesmo no rosto; Cesário não gostara de um certo jeito da boca, e o Brandão notara-lhe nas narinas o indício da teima e da perversidade. Duas semanas depois tornaram a encontrar-se os três, conversaram, e a opinião radicou-se. Eles chegaram mesmo à familiaridade da expressão: — má rês, alma de poucos amigos, etc.

Agora entende-se, creio eu, o espanto do amigo Cesário, não menos que o prazer do Brandão em dar-lhe a notícia. Entende-se, portanto, que só começassem a tomar os sorvetes para não vê-los derretidos, sem nenhum deles saber o que estava fazendo. — Juro que há quinze dias não era capaz de cuidar nisto, continuava o Brandão; mas os dois últimos encontros, principalmente o de segunda-feira... Não te digo nada... Creio que acabo casando.

— Ah! crês!

— É um modo de falar, é certo que acabo.

Cesário acabou o sorvete, engoliu um cálice de cognac, e fitou o amigo, que raspava o copo, amorosamente. Depois fez um cigarro, acendeu-o, puxou duas ou três fumaças, e disse ao Brandão que ainda esperava vê-lo recuar; em todo caso, aconselhava-lhe que não publicasse desde já o plano; esperasse algum tempo. Talvez viesse a recuar... — Não, interrompeu Brandão com energia.

— Como, não?

— Não recuo.

Cesário levantou os ombros.

— Achas que faço mal? pergunta o outro.

— Acho.

— Por quê?

— Não me perguntes por quê.

— Ao contrário, pergunto e insisto. Opões-te por causa de ser casamento. — Em primeiro lugar.

Brandão sorriu.

— E por causa da noiva, concluiu ele. Já esperava por isso; estás então com a opinião que ambos demos logo que ela chegou da província? Enganas-te. Também eu estava; mas mudei...

— E depois, continuou Cesário, falo por um pouco de egoísmo; vou perder-te... — Não.

— Sim e sim. Ora tu!... Mas como foi isso?

Brandão contou os pormenores do negócio; expôs minuciosamente todos os seus sentimentos. Não a pedira ainda, nem havia tempo para tanto; a própria resolução não estava formulada. Mas tinha por certo o casamento. Naturalmente, louvou as qualidades da namorada, sem convencer ao amigo, que, aliás, entendeu não insistir na opinião e guardá-la consigo.

— São simpatias, dizia ele.

(continua...)

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