Por Machado de Assis (1877)
EMÍLIA
Ora, o dia está fresco e sombrio; é perto, e o caminho é excelente. Se não me baterem à porta ficamos mal para sempre.
SEABRA
Ah! isto não... (a Tito) Também vens?
TITO
(de chapéu na mão)
Também.
EMÍLIA
E assim me deixa só?
TITO
Tem muito empenho em que eu fique?
EMÍLIA
Agrada-me a sua conversa.
TITO
Fico. Até logo.
Cena IX
TITO, EMÍLIA
TITO
V. Exa. disse agora uma falsidade.
EMÍLIA
Qual foi?
TITO
Disse que lhe era agradável a minha conversa. Ora, isso é falso como tudo quanto é falso...
EMÍLIA
Quer um elogio?
TITO
Não, falo franco. Eu nem sei como V. Exa. me atura: desabrido, maçante, às vezes chocarreiro, sem fé em coisa alguma, sou um conversador muito pouco digno de ser desejado. É preciso ter uma grande soma de bondade para ter expressões tão benévolas... tão amigas...
EMÍLIA
Deixe esse ar de mofa e...
TITO
Mofa, minha senhora?...
EMÍLIA
Ontem tomei chá sozinha!... sozinha!
TITO
(indiferente)
Ah!
EMÍLIA
Contava que o senhor viesse aborrecer-se urna hora comigo...
TITO
Qual, aborrecer... Eu lhe digo: o culpado foi o Ernesto.
EMÍLIA
Ah! foi ele?...
TITO
É verdade; deu comigo aí em casa de uns amigos, éramos quatro ao todo, rolou a conversa sobre o voltarete e acabamos por formar mesa. Ah! mas foi uma noite completa! Aconteceu-me o que me acontece sempre: ganhei!
EMÍLIA
(triste)
Está bom...
TITO
Pois olhe, ainda assim eu não jogava com pixotes; eram mestres de primeira força; um principiante; até às onze horas a fortuna pareceu desfavorecer-me, mas dessa hora em diante desandou a roda para eles e eu comecei a assombrar... pode ficar certa de que os assombrei. (Emília leva o lenço aos olhos) Ah! é que eu tenho diploma... mas que é isso? Está chorando?
EMÍLIA
(tirando o lenço e sorrindo)
Qual; pode continuar.
TITO
Não há mais nada; foi só isto.
EMÍLIA
Estimo que a noite lhe corresse feliz...
TITO
Alguma coisa...
EMÍLIA
Mas, a uma carta responde-se; por que não respondeu à minha?
TITO
À sua qual?
EMÍLIA
À carta que lhe escrevi pedindo que viesse tomar chá comigo?
TITO
Não me lembro.
EMÍLIA
Não se lembra?
TITO
Ou, se recebi essa carta, foi em ocasião que a não pude ler, e então esqueci-a em algum lugar...
EMÍLIA
É possível; mas é a última vez...
TITO
Não me convida mais para tomar chá?
EMÍLIA
Não. Pode arriscar-se a perder distrações melhores.
TITO
Isso não digo; V. Exa. trata bem a gente e em sua casa passam-se bem as horas... Isto é com franqueza. Mas então tomou chá sozinha? E o coronel?
EMÍLIA
Descartei-me dele. Acha que ele seja divertido?
TITO
Parece que sim... É um homem delicado; um tanto dado às paixões, é verdade, mas sendo esse um defeito comum, acho que nele não é muito digno de censura.
EMÍLIA
O coronel está vingado.
TITO
De quê, minha senhora?
EMÍLIA
(depois de uma pausa)
De nada! (levanta-se e dirige-se ao piano)
TITO
(com ar indiferente)
Ah!
EMÍLIA
Vou tocar; não aborrece?
TITO
V. Exa. é senhora de sua casa...
EMÍLIA
Não é essa a resposta.
TITO
Não aborrece, não... pode tocar. (Emília começa algum pedaço musical melancólico) V. Exa. não toca alguma coisa mais alegre?
EMÍLIA
(parando)
Não... traduzo a minha alma. (levanta-se)
TITO
Anda triste?
EMÍLIA
Que lhe importam as minhas tristezas?
TITO
Tem razão; não importam nada. Em todo o caso não é comigo?
EMÍLIA
Acha que lhe hei de perdoar a desfeita que me fez?
TITO
Qual desfeita, minha senhora?
EMÍLIA
A desfeita de me deixar tomar chá sozinha.
TITO
Mas eu já expliquei...
EMÍLIA
Paciência! O que sinto é que também nesse voltarete estivesse o marido de Margarida.
TITO
Ele retirou-se às dez horas; entrou um parceiro novo, que não era de todo mau...
EMÍLIA
Pobre Margarida!
TITO
Mas se eu lhe digo que ele se retirou às dez horas...
EMÍLIA
Não devia ter ido. Devia pertencer sempre a sua mulher. Sei que estou falando a um descrido; não pode calcular a felicidade e os deveres do lar doméstico. Viverem duas criaturas, uma para a outra, confundidas, unificadas; pensar, aspirar, sonhar a mesma coisa; limitar o horizonte nos olhos de cada uma, sem outra ambição, sem inveja de mais nada. Sabe o que é isto?
TITO
Sei. É o casamento... por fora.
EMÍLIA
Conheço alguém que lhe provava aquilo tudo...
TITO
Deveras? Quem é essa fênix?
EMÍLIA
Se lho disser, há de mofar; não digo.
TITO
Qual mofar! Diga lá, eu sou curioso.
EMÍLIA
(séria)
Não acredita que haja alguém que o ame?
TITO
Pode ser...
EMÍLIA
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877