Por Machado de Assis (1872)
Camilo estava em casa do coronel, quando ali apareceu o bando dos pastores, com alguns músicos à frente, e muita gente atrás. Formaram logo, ali mesmo na rua, um círculo; um pastor e uma pastora iniciaram a dança clássica. Dançaram, cantaram e tocaram todos, à porta e na sala do coronel que estava literalmente a lamber-se de gosto. É ponto duvidoso, e provavelmente nunca será liquidado, se o tenente-coronel Veiga preferia naquela ocasião ser ministro de Estado a ser imperador do Espírito Santo.
E todavia aquilo era apenas uma mostra da grandeza do tenente-coronel. O sol de domingo devia alumiar maiores coisas. Parece que esta razão determinou o rei da luz a trazer nesse dia os seus melhores raios. O céu nunca se mostrara mais limpidamente azul.
Algumas nuvens grossas, durante a noite, chegaram a emurchecer as esperanças dos festeiros; felizmente sobre a madrugada soprara um vento rijo que varreu o céu e purificou a atmosfera. A população correspondeu à solicitude da natureza. Logo cedo apareceu ela com os seus vestidos domingueiros, - jovial, risonha, palreira, - nada menos que feliz.
O ar atroava com foguetes; os sinos convidavam alegremente o povo à cerimônia religiosa. Camilo passara a noite na cidade em casa do padre Maciel, e foi acordado, mais cedo do que supusera, com os repiques e foguetada e mais demonstrações da cidade alegre. Em casa do pai continuara o moço seus hábitos de Paris, em que o comendador julgou não dever perturbá-lo. Acordava, portanto às 11 horas da manhã, exceto aos domingos, em que ia à missa, para de todo em todo não ofender os hábitos da terra.
– Que diabo é isto padre? gritou Camilo do quarto onde estava e no momento em que uma girândola lhe abria definitivamente os olhos.
– Que há de ser? respondeu o padre Maciel, metendo a cabeça pela porta: é a festa. Camilo não pode conciliar o sono, e viu-se obrigado a levantar-se. Almoçou com o padre, contou duas anedotas, confessou ao hóspede que Paris era o ideal das cidades, e saiu para ir ter à casa do imperador do divino. O padre saiu com ele. Em caminho viram de longe Leandro Soares. – Não me dirá, padre, perguntou Camilo, por que razão a filha do Dr. Matos não atende àquele pobre rapaz que gosta tanto dela?
Maciel concertou os óculos e expôs a seguinte reflexão:
– Você parece tolo.
– Não tanto, como lhe pareço, replicou o filho do comendador, porque mais de uma pessoa tem feito a mesma pergunta.
– Assim é, na verdade, disse o padre; mas há coisas que outros dizem e a gente não repete. A Isabelinha não gosta do Soares simplesmente porque não gosta.
– Não lhe parece que essa moça é um tanto esquisita?
– Não, disse o padre, parece-me uma grande finória.
– Ah! por quê?
– Suspeito que tem muita ambição; não aceita o amor de Soares, a ver se pilha algum casamento que lhe abra a porta das grandezas políticas.
– Ora, disse Camilo, levantando os ombros.
– Não acredita?
– Não.
– Pode ser que me engane; mas creio que é isto mesmo. Aqui cada qual dá uma explicação à isenção de Isabel; todas as explicações me parecem absurdas; a minha é a melhor. Camilo fez algumas objeções à explicação do padre, e despediu-se dele para ir a casa do tenente-coronel.
O festivo imperador estava literalmente fora de si. Era a primeira vez que exercia cargo honorífico e timbrava em fazê-lo brilhantemente, e até melhor que os seus predecessores. Ao natural desejo de ficar por baixo, acrescia o elemento da inveja política. Alguns adversários seus diziam pela boca pequena que o brioso coronel não era capaz de dar conta da mão.
– Pois verão se sou capaz, foi o que ele disse ao ouvir de alguns amigos a malícia dos adversários.
Quando Camilo entrou na sala, acabava o tenente-coronel de explicar umas ordens relativas ao jantar que se devia seguir à festa, e ouvia algumas informações que lhe dava um irmão definidor acerca de uma cerimônia da sacristia.
– Não ouso falar-lhe, coronel, disse o filho do comendador, quando o Veiga ficou só com ele; não ouso interrompê-lo.
– Não interrompe, acudiu o imperador do divino; agora deve tudo ser acabado. O comendador vem?
– Já cá deve estar.
– Já viu a igreja?
– Ainda não.
– Está muito bonita. Não é por me gabar; creio que a festa não desmerecerá das outras, e até em algumas coisas há de ir melhor.
Era absolutamente impossível não concordar com esta opinião, quando aquele que a exprimia fazia assim o seu próprio louvor. Camilo encareceu ainda mais o mérito da festa. O coronel ouvia-o com um riso de satisfação íntima, e dispunha-se a provar que o seu jovem amigo ainda não apreciava bem a situação, quando este desviou a conversa, perguntando:
– Ainda não veio o Dr. Matos?
– Já.
– Com a família?
– Sim, com a família.
Neste momento foram interrompidos pelo som de muitos foguetes e de uma música que se aproximava.
– São eles! disse Veiga: vêm buscar-me. Há de dar-me licença.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A parasita azul. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, ano 12, n. 6-9, jun.-set. 1872. (Publicado em folhetins).