Por Machado de Assis (1885)
Entretanto, adverti que da parte dele não vira nada, nem à mesa, nem na varanda, nada que mostrasse igual afeição. Dar-se-ia que só ela o amasse, não ele a ela? A hipótese afligiu-me. Achava-os tão ajustados um ao outro, que não acabarem ligados parecia-me uma violação da lei divina. Tais eram as reflexões que vim fazendo, quando dali voltei nesse dia, e para quem andava à cata de documentos políticos, não é de crer que semelhante preocupação fosse de grande peso; mas nem a alma de um homem é tão estreita que não caibam nela cousas contrárias nem eu era tão historiador como presumira. Não escrevi a história que esperava; a que de lá trouxe é esta.
Não me foi difícil averiguar que o Félix amava a pequena. Logo nos primeiros dias pareceu-me outro, mais prazenteiro, e à mesa ou fora dela, pude apanhar alguns olhares, que diziam muito. Observei também que essa moça, tão criança, era inteiramente mulher quando os olhos dela encontravam os dele, como se o amor fosse a puberdade do espírito, e mais notei que, se toda a gente a tratava de um modo afetuoso, mas superior, ele tinha para com ela atenção e respeito.
Já então não ia eu ali todos os dias, mas três ou quatro vezes por semana. A dona da casa, posto que sempre afável, recebia a impressão natural da assiduidade, que vulgariza tudo. Os dous, não; o Félix vinha muitas vezes esperar-me a distância da casa, e na casa, ao portão, ou na varanda, achava sempre a mocinha, rindo pela boca e pelos olhos. É bem possível que eu fosse para eles como o traço de pena que liga duas palavras; é certo, porém, que gostavam de mim. Eu, entre ambos, com- a minha batina (deixem-me confessar esta vaidade) tinha uns ares do bispo Cirilo entre Eudoro e Cimódoce.
Há de parecer singular que não me lembrasse logo do pedido de D. Antônia para que o filho me acompanhasse à Europa, e o não ligasse a este amor nascente: lembrei-me depois. A princípio, vendo a afeição com que ela tratava a mocinha, cuidei que os aprovava. Mais tarde, quando me recordei do pedido, acreditei que esse amor era para ela o remédio ao mal secreto do filho, se algum havia, que me não quisera revelar.
Durante os primeiros dias, depois da chegada de Lalau, nada aconteceu que mereça a pena contar aqui. Félix acompanhava-me no trabalho, mas interrompidamente,. e as vezes, se saía a algum negócio da casa, só nos víamos à mesa do jantar. Lalau não ia à biblioteca; um dia, porem, atreveu-se a entrar às escondidas, e foi ter comigo. Suspendi o trabalho, e conversamos perto de meia hora, sobre uma infinidade de cousas, presentes e passadas. Era mais de onze horas; o dia estava quente, o ar parado, a casa silenciosa; salvo um ou outro mugido, ao longe, ou algum canto de passarinho. Eu, com os estudos clássicos que tivera, e a grande tendência idealista, dava a tudo a cor das minhas reminiscências e da minha índole, acrescendo que a própria realidade externa,— antiquada e solene nos móveis e nos livros,—recente e graciosa em Lalau,—era propícia a transfiguração.
Deixei-me ir ao sabor do momento. Notem bem que ela às vezes, ouvia mal, ou não sabia ouvir absolutamente, mas com os olhos vagos, pensando em outra cousa. Outras vezes interrompia-me para fazer um reparo inútil. Já disse também que tinha a conversação trancada e salteada Com tudo isso, era interessante falar-lhe, e principalmente ouvi-la. Sabia, no meio das puerilidades freqüentes da palavra, não destoar nunca da consideração que me devia; e tanto era curiosa como franca.
—Teve medo? disse ela.
—Como é que a senhora entrou?
—Entrando; vi o senhor aqui, e vim muito devagar, pensando que não chegasse ao fim da sala, sem que o senhor me ouvisse, mas não ouvi nada, todo embebido no que está escrevendo. O que é?
— Cousas sérias.
—Nhãtônia disse que o senhor está aqui fazendo umas notas políticas para pôr num livro. — Então se sabia como e que me perguntou?
Lalau encolheu os ombros.
— Fez mal, disse eu. Olhe que eu sou padre, posso pregar-lhe um sermão.
—O senhor prega sermões? por que não vem pregar aqui, na quaresma? Eu gosto muito de sermões. No ano passado, ouvi dous, na igreja da Lapa, muito bonitos. Não me lembra o nome do padre. Eu, se fosse padre, havia de pregar também. Só não gosto dos latinórios; não entendo.
Falou assim, a troncos, uns bons cinco minutos; eu deixei-a ir, olhando só, vivendo daquela vida que jorrava dela, cristalina e fresca. No fim, Lalau sentou-se, mas não se conservou sentada mais de dous minutos, levantou-se outra vez para ir à janela, e tornou dentro para mirar os livros. Achou-os grandes demais; admirava como havia quem tivesse a paciência de os ler. E depois alguns eram tão velhos!
— Que tem que sejam velhos? retorqui. Deus é velho, e é a melhor leitura que há.
Lalau olhou espantada para mim. Provavelmente era a primeira vez que ouvia uma figura daquelas, e faz-lhe impressão. Teimou depois que os livros velhos pareciam-se com o antigo capelão da casa, o antecessor do Padre Mascarenhas, que andava sempre com a batina empoeirada, e tinha a cara feita de rugas. Conseguintemente vieram histórias do capelão. Em nenhuma delas, nem de outras entrava o Félix; exclusão que podia ser natural, mas que me não pareceu casual. Como eu lhe dissesse que não se deve mofar dos padres, ela ficou muito séria e atenta; depois rompeu, rindo:
—Mas não é do senhor.
— De mim ou de outro, é a mesma cousa.
—Ora, mas o outro era tão feio, tão lambuzão. . .
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casa Velha. A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, Rio de Janeiro, 1885-1886.