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#Crônicas#Literatura Brasileira

A Semana

Por Machado de Assis (1892)

E por que não sei eu finanças? Por que, ao lado dos dotes nativos com que aprouve ao céu distinguir-me entre os homens, não possuo a ciência financeira? Por que ignoro eu a teoria do imposto, a lei do câmbio, e mal distingo dez mil-réis de dez tostões? Nos bonds é que me sinto vexado. Há sempre três e quatro pessoas (principalmente agora) que tratam das cousas financeiras e econômicas, e das causas das cousas, com tal ardor e autoridade, que me oprimem. É então que eu leio algum jornal, se o levo, ou rôo as unhas, — vício dispensável; mas antes vicioso que ignorante.

Quando não tenho jornal, nem unhas, atiro-me às tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o comércio e a indústria, a pintura e a ortografia. E não é novo este meu costume, em casos de aperto. Foi assim que um dia, há anos, não me lembra em que loja, nem em que rua, achei uma tabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este título era uma nova edição da esfinge. Pensei nele, estudei-o, e não podia dar com o sentido, até que me lembrou virá-lo do avesso: Ao Destino do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso; porque, em suma, pode admitir-se um destino ao planeta em que pisamos... Talvez a ciência econômica e financeira seja isto mesmo, o avesso do que dizem os discutidores de bonds. Quantas verdades escondidas em frases trocadas! Quanto fiz esta reflexão, exultei. Grande consolação é persuadir-se um homem de que os outros são asnos.

E aí estão quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto não sei bem qual seja, tantos são eles e tão opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças, que me não lembre do Honório Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de uma cidade alemã. Iam com ele moças e homens a cavalo— viram uma flor muito bonita no alto de uma árvore, Bicalho ou outro quis colhê-la, apoiando os pés no dorso do cavalo, mas não alcançava a flor. Por fortuna, vinha da povoação um moleque, e o Bicalho foi ter com ele.

— Vem cá, trepa àquela árvore, e tira a flor que está em cima. . .

Estacou assombrado. O moleque respondeu-lhe em alemão, que não entendia português. Quando Bicalho entrou na cidade, e não ouviu nem leu outra língua senão a alemã, a rica e forte língua de Goethe e de Heine, teve uma impressão que ele resumia assim: "Achei-me estrangeiro no meu próprio país!" Lembram-se dele? Grande talento, todo ele vida e espírito.

Isto, porém, não tem nada com os chins, nem os judeus, nem particularmente com aquela moça que acaba de impedir a canonização de Colombo. Hão de ter lido o telegrama que dá notícia de haver sido posta de lado a idéia de canonização do grande homem, por motivo de uns amores que ele trouxera com uma judia. Todos os escrúpulos são respeitáveis, e seria impertinência querer dar lições ao Santo Padre em matéria de economia católica. Colombo perdeu a canonização sem perder a glória, e a própria Igreja o sublima por ela. Mas...

Mas, por mais que a gente fuja com o pensamento ao caso, o pensamento escapa-se, rompe os séculos e vai farejar essa judia que tamanha influência devia ter na posteridade. E compõe a figura pelas que conhece. Há-as de olhos negros e de olhos garços, umas que deslizam sem pisar no chão, outras que atam os braços ao descuidado com a simples corda das pestanas infinitas. Nem faltam as que embebedam e as que matam. O pensamento evoca a sombra da filha de Moisés, e pergunta como é que aquele grande e pio genovês, que abriu à fé cristã um novo mundo, e não se abalançou ao descobrimento sem encomendar-se a Deus, podia ter consigo esse pecado mofento, esse fedor judaico, — deleitoso, se querem, mas de entontecer a perder uma alma por todos os séculos dos séculos.

Eu ainda quero crer que ambos, sabendo que eram incompatíveis, fizeram um acordo para dissimular e pecar. Combinaram em ler o Cântico dos Cânticos; mas Colombo daria ao texto bíblico o sentido espiritual e teológico, e ela o sentido natural e molemente hebraico.

— O meu amado é para mim como um cacho de Chipre, que se acha nas vinhas de Engadi.

— Os teus olhos são como os das pombas, sem falar no que está escondido dentro. Os teus dous peitos são como dous filhinhos gêmeos da cabra montesa, que se apascentam entre as açucenas.

— Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas mãos destilavam mirra.

— Os teus lábios são como uma fita escarlate, e o teu falar é doce.

— O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso.

Quantas uniões danadas não se mantêm por acordos semelhantes, em consciência, às vezes! Há uma grande palavra que diz que todas as cousas são puras para quem é puro.

(continua...)

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