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#Contos#Literatura Brasileira

A Parasita Azul

Por Machado de Assis (1872)

Não averiguou, nem pode, as restantes feições da moça; mas o que pode contemplar à vontade, o que já vinha admirando de longe, era a elegância nativa do busto e o gracioso desgarro com que ela montava. Vira muitas amazonas elegantes e destras. Aquela porém tinha alguma coisa em que se avantajava às outras; era talvez o desalinho do gesto, talvez a espontaneidade dos movimento, outra coisa talvez, ou todas essas juntas que davam à interessante goiana incontestável supremacia.

Isabel parava de quando em quando o cavalo e dirigia a palavra à esposa do coronel, a respeito de qualquer acidente, - de um efeito de luz, de um pássaro que passava, de um som que se ouvia, - mas em nenhuma ocasião encarava ou sequer olhava de esguelha o filho do comendador. Absorvido na contemplação da moça, Camilo deixou cair na conversa, e havia já alguns minutos que ele e D. Gertrudes iam cavalgando, sem dizer uma palavra, ao lado um do outro. Foram interrompidos em sua marcha silenciosa por um cavaleiro, que vinha atrás da comitiva a trote largo.

Era Soares.

O filho do negociante vinha bem diferente do que até ali andava. Cumprimentou-os sorrindo jovial como estivera nos primeiros dias de viagem do médico. Não era porém difícil conhecer que a alegra de Soares era um artifício. O pobre namorado fechava o rosto de quando em quando, ou fazia um gesto de desespero que felizmente escapava aos outros. Ele receava o triunfo de um homem que física e intelectualmente lhe era superior; que, além disso, gozava naquela ocasião a grande vantagem de dominar a atenção pública, que era o uso da aldeia, o acontecimento do dia, o homem da situação. Tudo conspirava para derrubar a última esperança de Soares, que era a esperança de ver morrer a moça isenta de todo o vínculo conjugal. O infeliz namorado tinha o sestro, aliás comum, de querer ver quebrada ou inútil a taça que ele não podia levar aos lábios.

Cresceu porém seu receio quando, estando escondido no taquaral de que falei acima, para ver passar Isabel, como costumava fazer muitas vezes, descobriu a pessoa de Camilo na comitiva. Não pode reter uma exclamação de surpresa, e chegou a dar um passo na direção da estrada. Deteve-se a tempo. Os cavaleiros, como vimos, passaram adiante, deixando o cioso pretendente a jurar aos céus e à terra que tomaria desforra do seu atrevido rival, se o fosse.

Não era rival, bem sabemos; o coração de Camilo guardava ainda fresca a memória de Artemisa moscovita, cujas lágrimas, apesar da distância, o rapaz sentia que eram ardentes e aflitivas. Mas quem poderia convencer a Leandro Soares que o elegante moço da Europa, como lhe chamavam não ficaria enamorado da esquiva goiana?

Isabel, entretanto, apenas viu o infeliz pretendente, deteve o cavalo e estendeu-lhe afetuosamente a mão. Um adorável sorriso acompanhou este movimento. Não era bastante para dissipar as dúvidas do pobre moço. Diversa, foi porém a impressão de Camilo. – Ama-o, ou é uma grande velhaca, pensou ele.

Casualmente, - e pela primeira vez, - olhava Isabel para o filho do comendador. Perspicácia ou adivinhação, leu-lhe no rosto esse pensamento oculto; franziu levemente a testa com uma expressão tão viva de estranheza, que o médico ficou perplexo e não pode deixar de acrescentar, já então com os lábios, à meia voz, falando para si:

– Ou fala com o diabo.

– Talvez, murmurou a moça com os olhos fitos no chão.

Isto foi dito assim, sem que os outros dois percebessem. Camilo não podia desviar os olhos da formosa Isabel, meio espantado, meio curioso, depois da palavra murmurada por ela em tão singulares condições. Soares olhava para Camilo com a mesma ternura, com que um gavião espreita uma pomba. Isabel brincava com o chicotinho. D. Gertrudes, que temia perder a missa do padre Maciel e receber um reparo amigável do marido, deu voz de marcha, e a comitiva seguiu imediatamente.

CAPÍTULO IV

A FESTA

No sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. De toda a parte correra uma chusma de povo que ia assistir à festa anual do Espírito Santo.

Vão rareando os lugares em que de todo se não apagou o gosto dessas festas clássicas, resto de outras eras, que os escritores do século futuro hão de estudar com curiosidade, para pintar aos seus conterrâneos um Brasil que eles já não hão de conhecer. No tempo em que esta história se passa uma das mais genuínas festas do espírito Santo era a da cidade de Santa Luzia.

O tenente-coronel Veiga, que era então o imperador do divino, estava em uma casa que possuía na cidade. Na noite de sábado foi ali ter o bando dos pastores, composto de homens e mulheres com o seu pitoresco vestuário, e acompanhado pelo clássico velho, que era um sujeito de calção e meia, sapato raso, casaca esguia, colete comprido e grande bengala na mão.

(continua...)

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