Por Machado de Assis (1883)
Agora, como é que se tratam uns aos outros esses dignitários? Não sei; mas presumo, pelo pouco que conheço da natureza humana, que eles não ficam a meio caminho da ficção. O Rei pode ter Majestade, e assim também a Rainha. E quando receberem os cumprimentos, adivinho que os receberão com certa complacência fina, certo ar digno e grande. Hão de chover os títulos — Vossa Majestade, Vossa Perfumaria Vossa Mastreação. . . Em roda o povo de Guaratinguetá, e por cima a lua cochilando de fastio e sono..
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[24 novembro]
A Folha Nova afirma em seu número de ontem, na parte editorial, que os membros da polícia secreta; agora dissolvida, tinham o costume de gritar para se darem importância: Sou polícia secreta!
Pour un comble, violá un comble. Há de haver alguma razão,igualmente secreta, para um caso tão fora das previsões normais.Por mais que a parafuse, não acho nada, mas vou trabalhar e um dia destes, se Deus quiser, atinando com a coisa, dou com ela no prelo.
Porquanto (e esta é a parte sublime do meu raciocínio), porquanto eu não creio que fosse a idéia de darem-se importância que levasse os secretas a descobrirem-se.
Conheci esses modestos funcionários. Não eram só modestos, eram também lógicos.
Nenhum deles bradaria que era secreta, com a intenção vaidosa de aparecer; mas, dado mesmo que quisessem fazê-lo, era inútil porque os petrópolis que traziam na mão definiam melhor do que os mais grossos livros do universo. Eu pergunto aos homens de boa vontade razão clara e coração sincero: - Quando a gente via, na esquina, três ou quatro sujeitos encostadinhos da Silva, com fuzis nos olhos, e petrópolis na mão, não sabia logo, não jurava que eram três ou quatro secretas?
Afinal achei a razão do fato que assombrou ao nosso colega e a nós. Peço ao leitor que espane primeiro as orelhas e faça convergir toda a atenção para o que vou dizer, que não é de compreensão fácil.
Os secretas compreenderam que a primeira condição de uma po1ícia secreta era ser secreta. Para isso era indispensável, não só que ninguém soubesse que eles eram secretas, como até que nem mesmo chegasse remotamente a suspeitá-lo. Como impedir a descoberta ou a desconfiança? De um modo simples: — gritando: Sou secreta! os secretas deixavam de ser secretas, e, sabendo o público que eles Já não eram
secretas, agora é que eles ficavam verdadeiramente secretas. Não sei se me entendem. Eu não entendi nada.
Mas, neste assunto, tudo o que se possa dizer não vale a cena, que se deu há cinco ou seis anos, na Rua da Uruguaiana. Está nos jornais do tempo. Um grupo de homens do povo perseguia a um indivíduo, que acusavam de ter praticado um furto. Os perseguidores corriam gritando: Ésecreta! é secreta! Perto da Rua do Ouvidor, conseguem apanhar o fugitivo, e aparece um urbano. Este chega, olha para o perseguido, e, com um tom de repreensão amiga: — Deixa disso, Gaudêncio!
Polícia secreta, que se divulga, ministros de uma república, que matam o presidente, eis aí dois fenômenos que comprovam aquele dito do Cardeal Antonelli: il mondo casca. Que diria o bom cardeal, se visse, como vi há dias, um frade dentro de um tílburi? É verdade que chovia, e que a chuva, quando cai, não poupa ninguém ;pode ser mesmo que a coisa não encontre oposição nos cânones. Mas para mim a questão é de estética. Há em mim um resto de costela romântica, que não permite frade fora do mosteiro. Concedo-lhe que ande a pé, concedo-lhe um cavalo, uma cama, um refeitório; mas homem, tílburi!
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[16 dezembro]
VALENTIM MAGALHÃES perdeu uma bela ocasião de não ficar zangado. As suas "Notas à Margem", de ontem, são uma das mais odiosas injustiças deste tempo, aliás tão farto delas.
Não tenho nada com os quatro bacharéis em direito que foram ao enterro de Teixeira de Freitas, nem com os que lá não foram. Entretanto, podia lembrar ao meu amigo Valentim Magalhães, que algum motivo poderoso, embora insignificante, pode ter causado a escassez de colegas no enterro; por exemplo, a falta de calças pretas.
Por mais poeta que seja, Valentim Magalhães tem obrigação (visto que está na imprensa) de compulsar os documentos oficiais e comerciais, os livros dos economistas, as tabelas de importação e exportação. Se o fizesse, saberia que todos os anos, desde fins de novembro até princípios de março, os países quentes exportam para a Groenlândia grande número de calças pretas. Nos países frios, a exportação verifica-se entre abril e agosto. Este fenômeno tem sido objeto de profundas cogitações. Laveleye (Da Vêtement Humain, p. 79) afirma que o consumo imoderado de calças pretas entre os groenlandeses há de produzir imensa alteração nos hábitos europeus. Eis as próprias palavras do economista belga:
Je crois même, avec de bons auteurs, que dans un siècle l'Europe ne portera plus que de pantalons gris, jaunes ou même bleus, car il est averé qu'avec nos moyens chimiques c'est impossible de teindre une telle quantité de pantalons noirs. I1 faudra bien, ou changer nos habitudes, ou supprimer les groelandais.
Leia Valentim Magalhães o ornal dos Alfaiates (tomo XVII, p. 14) e achará que, nos últimos dez anos, a exportação de calças pretas da Europa e dos Estados Unidos para a Groenlândia atingiu a dez milhões de exemplares.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Balas de estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1883–1886.