Por Machado de Assis (1877)
Felizmente! (mudando o tom) Tive duas idéias. Uma foi o desprezo; mas desprezá-los é pô-los em maior liberdade e ralar-me de dor e de vergonha; a segunda foi o duelo; é melhor... ou mato... ou...
MARGARIDA
Deixe-se isso.
CORONEL
É indispensável que um de nós seja riscado do número dos vivos...
MARGARIDA
Pode ser engano...
CORONEL
Mas não é engano, é certeza.
MARGARIDA
Certeza de quê?
CORONEL
Ora ouça: (lê o bilhete) "Se ainda não me compreendeu é bem curto de penetração. Tire a máscara e eu me explicarei. Esta noite tomo chá sozinha. O importuno coronel não me incomodará com as suas tolices. Dê-me a felicidade de vê-lo e admirá-lo. Emília."
MARGARIDA
Mas que é isto?
CORONEL.
Que é isto? Ah! se fosse mais do que isto já eu estava morto! Pude pilhar a carta e a tal entrevista não se deu...
MARGARIDA
Quando foi escrita a carta?
CORONEL
Ontem.
MARGARIDA
Tranqüilize-se: posso afirmar-lhe que essa carta é pura caçoada. Trata-se de vingar o nosso sexo ultrajado; trata-se de fazer com que o Tito se apaixone... nada mais.
CORONEL
Sim?
MARGARIDA
É pura verdade. Mas veja lá. Isto é segredo. Se lho descobri foi por vê-lo tão aflito. Não nos comprometa.
CORONEL
Isso é sério?
MARGARIDA
Como quer que lho diga?
CORONEL
Ah! que peso me tirou! Pode estar certa de que o segredo caiu num poço. Oh! muito me hei de rir!... muito me hei de rir!... Que boa inspiração tive em vir falar-lhe! Diga-me: posso dizer à D. Emília que sei tudo?
MARGARIDA
Não!
CORONEL
É então melhor que não me dê por achado...
MARGARIDA
Sim.
CORONEL
Muito bem!
Cena II
Os mesmos, TITO
TITO
Bom dia, D. Margarida... Sr. Coronel... (a Margarida) Sabe que acordei não há uma hora? Disseram-me que tinham saído a visitar D. Emília. Almocei e aqui estou.
MARGARIDA
Dormiu bem?
TITO
Como um justo. Tive sonhos cor-de-rosa: sonhei com o coronel...
CORONEL.
(mofando)
Ah! Sonhou comigo?... (à parte) Coitado! Tenho pena dele!
MARGARIDA
Sabe que o Sr. meu marido anda de passeio?
TITO
Sim? (vai à janela) E a manhã está bonita! Manhã? Já não é muito cedo... Jantam cá?
MARGARIDA
Não sei. Tenho duas visitas para fazer: uma, com Emília, outra, com Ernesto.
CORONEL
(a Tito)
Então vai engordando?
TITO
Acha?
CORONEL
Pois não! Eu creio que é do amor...
TITO
Do amor? Ó coronel, está sonhando?
CORONEL
(misterioso)
Talvez... talvez... (à parte) Tu é que estás sonhando.
MARGARIDA
Eu vou ver se Emília está pronta.
TITO
Pois não... Ah! ela está boa?
MARGARIDA
Está. Até já. (baixo ao coronel) Silêncio.
Cena III
CORONEL, TITO
TITO
Como vão os seus amores?
CORONEL
Que amores?
TITO
Os seus, a Emília... Já lhe fez compreender toda a imensidade da paixão que o devora?
CORONEL
(ar mofado)
Qual... Preciso de algumas lições... Se mas quisesse dar?...
TITO
Eu? Está sonhando!
CORONEL
Ah! eu sei que o senhor é forte... É modesto, mas é forte... é até fortíssimo!... Ora, eu sou realmente um aprendiz... Tive há pouco a idéia de desafiá-lo.
TITO
A mim?
CORONEL
É verdade, mas foi uma loucura de que me arrependo.
TITO
Além de que, não é uso em nosso país...
CORONEL
Em toda a parte é uso vingar a honra.
TITO
Bravo, D. Quixote!
CORONEL
Ora, eu acreditava-me ofendido na honra.
TITO
Por mim?
CORONEL
Mas emendei a mão; reparei que era antes eu quem ofendia, pretendendo lutar com um mestre, eu, simples aprendiz...
TITO
Mestre de quê?
CORONEL
Dos amores. Oh! eu sei que é mestre...
TITO
Deixe-se disso... eu não sou nada... O coronel, sim; o coronel vale um urso, vale mesmo dois. Como havia de eu... Ora! Aposto que teve ciúmes?
CORONEL
Exatamente.
TITO
Mas era preciso não me conhecer, não saber das minhas idéias...
CORONEL
Homem, às vezes é pior.
TITO
Pior, como?
CORONEL
As mulheres não deixam uma afronta sem castigo... As suas idéias são afrontosas... Qual será o castigo?... (depois de uma pausa) Paro aqui... paro aqui...
TITO
Onde vai?
CORONEL
Vou sair. Adeus. Não se lembre mais da minha desastrada idéia do duelo...
TITO
Isso está acabado... Ah! você escapou de boa!
CORONEL
De quê?
TITO
De morrer. Eu enfiava-lhe a espada por esse abômen... com um gosto... com um gosto só comparável ao que tenho de abraçá-lo vivo e são!
CORONEL
(com um riso amarelo)
Obrigado, obrigado. Até logo!
TITO
Não se despede dela?
CORONEL
Eu volto já...
Cena IV
TITO
(só)
Este coronel não tem nada de original... Aquela opinião a respeito das mulheres não é dele... Melhor, vai-se confirmando... Nem me são precisas novas confirmações... Já sei tudo... Ah! minha conquistadora!... Aí vêm as duas...
Cena V
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877