Por Machado de Assis (1872)
– A moléstia ainda está no período agudo, disse ele consigo.
Teve porém curiosidade de ver a formosa Isabelinha, que tão por terra deitara aquele verboso cabo eleitoral. A todas as moças da localidade, em dez léguas em redor, havia já falado o jovem médico. Isabel era a única esquiva até então. Esquiva não digo bem. Camilo fôra uma vez à fazenda do Dr. Matos; mas a filha estava doente. Pelo menos foi isso o que lhe disseram.
– Descanse, dizia-lhe um vizinho a quem ele mostrara impaciência de conhecer a amada de Leandro Soares; há de vê-la no baile do coronel veiga, ou na festa do Espírito Santo, ou em outra qualquer ocasião.
A beleza da moça, que ele não julgava pudesse ser superior, nem sequer igual, à da viúva do príncipe Alexis, a paixão incurável de Soares e o tal ou qual mistério com que se falava de Isabel, tudo isso excitou ao último ponto a curiosidade do filho do comendador.
No domingo próximo, oito dias antes do Espírito Santo, saiu Camilo da fazenda para ir à missa na igreja da cidade, como já fizera nos domingos anteriores. O cavalo ia a passo lento, a compasso com o pensamento do cavaleiro, que se espreguiçava pelo campo fora em busca das sensações que já não tinha e que ansiava ter de novo.
Mil singulares idéias atravessavam o cérebro de Camilo. Ora, almejava alar-se com cavalo e tudo, os ares e ir cair defronte do Palais-Royal, ou em outro qualquer ponto da capital do mundo. Logo depois fazia a si mesmo a descrição de um cataclismo tal, que ele viesse a achar-se almoçando no Café Tortoni, dois minutos depois de chegar ao altar o padre Maciel.
De repente, ao quebrar uma volta da estrada, descobriu ao longe duas senhoras a cavalo acompanhadas por um pajem. Picou de esporas e dentro de pouco tempo estava junto dos três cavaleiros. Uma das senhoras voltou a cabeça, sorriu e parou. Camilo aproximou-se, com a cabeça descoberta, e estendeu-lhe a mão, que ela apertou.
A senhora a quem cumprimentara era a esposa do tenente-coronel Veiga. Representava ter quarenta e cinco anos, mas estava assaz conservada. A outra senhora, sentindo o movimento da companheira, fez parar também o cavalo e voltou igualmente a cabeça. Camilo não olhava então para ela. Estava ocupado em ouvir D. Gertrudes, que lhe dava notícias do tenente-coronel.
– Agora só pensa na festa, dizia ela; já deve estar na igreja. Vai à missa, não? – Vou.
– Vamos juntos.
Trocadas estas palavras, que foram rápidas, Camilo procurou com os olhos a outra cavaleira. Ela porém ia já alguns passos adiante. O médico colocou-se ao lado de D. Gertrudes, e a comitiva continuou a andar. Iam assim conversando havia já uns dez minutos, quando o cavalo da senhora que ia adiante estacou.
– Que é, Isabel? perguntou D. Gertrudes.
– Isabel! exclamou Camilo, sem dar atenção ao incidente que provocara a pergunta da esposa do coronel.
A moça voltou a cabeça e levantou os ombros respondendo secamente:
– Não sei.
A causa era um rumor que o cavalo sentira por trás de uma espessa moita de taquaras que ficava à esquerda do caminho. Antes porém que o pajem ou Camilo fosse examinar a causa da relutância do animal, a moça fez um esforço supremo, e chicoteando vigorosamente o cavalo, conseguiu que este vencesse o terror, e deitasse a correr a galope adiante dos companheiros.
– Isabel! disse Camilo a D. Gertrudes. Aquela moça será a filha do Dr. Matos? – É verdade. Não a conhecia?
– Há oito anos que a não vejo. Está uma flor! Já me não admira que se fale aqui tanto na sua beleza. Disseram-me que estava doente...
– Esteve; mas as suas doenças são coisas de pequena monta. São nervos; assim se diz, creio eu, quando se não sabe do que uma pessoa padece...
Isabel parara ao longe, e voltada para a esquerda da estrada, parecia admirar o espetáculo da natureza. Daí a alguns minutos estavam perto dela os seus companheiros. A moça ia prosseguir a marcha, quando D. Gertrudes lhe disse:
– Isabel!
A moça voltou o rosto. D. Gertrudes aproximou-se dela.
– Não te lembras do Dr. Camilo Seabra?
– Talvez não se lembre, disse Camilo. Tinha doze anos quando eu saí daqui, e já lá são oito!
– Lembro-me, respondeu Isabel curvando levemente a cabeça, mas sem olhar para o médico.
E chicoteando de mansinho o cavalo, seguiu para diante. Por mais singular que fosse aquela maneira de reatar conhecimento antigo, o que mais impressionou então o filho do comendador foi a beleza de Isabel, que lhe pareceu estar na altura da reputação.
Tanto quanto se podia julgar à primeira vista, a esbelta cavaleira deveria ser mais alta que baixa. Era morena, - mas de um moreno acetinado e macio, com uns delicadíssimos longes cor-de rosa, - o que seria efeito da agitação, visto que afirmavam ser extremamente pálida. Os olhos, - não lhes pode Camilo ver a cor, mas sentiu-lhes a luz que valia mais talvez, apesar de o não terem fitado, e compreendeu logo que com olhos tais a formosa goiana houvesse fascinado o mísero Soares.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A parasita azul. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, ano 12, n. 6-9, jun.-set. 1872. (Publicado em folhetins).