Por Machado de Assis (1888)
Chamam-se almas os campônios que lavram as terras de um proprietário, e pelos quais, conforme o número, paga este uma taxa ao Estado. No intervalo do lançamento do imposto, morrem alguns campônios e nascem outros. Quando há déficit, como o proprietário tem de pagar o número registrado, primeiro que se faça outro recenseamento, chamam-se almas mortas os campônios que faltam.
Tchitchikof, um espertalhão da minha marca, ou talvez maior, lembra-se de comprar as almas mortas de vários proprietários. Bom negócio para os proprietários, que vendiam defuntos ou simples nomes, por dez-réis de mel coado. Tchitchikof, logo que arranjou umas mil almas mortas, registrou-as como vivas pegou dos títulos do registro, e foi ter a um Monte de Socorro, que, à vista dos papéis legais, adiantou ao suposto proprietário uns 200.00 rublos; Tchitchikof meteu-os na mala e fugiu para onde a polícia russa o não pudesse alcançar.
Creio que entenderam; vejam agora o meu plano, que é tão fino como esse, e muito mais honesto. Sabem que a honestidade é como a chita, há de todo o preço, desde meia pataca.
Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio, e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu ao seu estabelecimento, e perguntava-lhe:
— Os seus libertos ficaram todos?
— Metade só, ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; -consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
— Quer o senhor vender-mos?
Espanto do leitor, eu, explicando:
— Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.
O leitor assombrado:
—Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor...
— Não lhe importe isso. Vende-mos?
— Libertos não se vendem.
— É verdade, mas a escritura de venda terá a data de 29 de abril nesse caso, não foi o senhor que perdeu os escravos, fui eu. Os preço marcados na escritura serão os da tabela da lei de 1885- mas e realmente não dou mais de dez mil-réis por cada um.
Calcula o leitor:
— Duzentas cabeças a dez mil-réis são dous contos. Dous conto por sujeitos que não valem nada, porque já estão livres, é um bom negócio
Depois refletindo:
— Mas, perdão, o senhor leva-os consigo?
— Não, senhor: ficam trabalhando para o senhor; cu só levo escritura.
— Que salário pede por eles?
— Nenhum, pela minha parte. ficam trabalhando de graça. O senhor pagar-lhes-á o que já paga.
Naturalmente, o leitor, à força de não entender, aceitava o negócio Eu ia a outro, depois a outro. depois a outro, até arranjar quinhentos libertos, que é até onde podiam ir os cinco contos emprestados, recolhia-me à casa, e ficava esperando.
Esperando o quê? Esperando a indenização, com todos os diabos Quinhentos libertos, a trezentos mil-réis. termo médio, eram cento e cinqüenta contos; lucro certo: cento e quarenta e cinco.
Porquanto, isto de indenização, dizem uns que pode ser que sim outros que pode ser que não: é por isso que eu pedia o dinheiro casamento. Dado que sim, passa e casava (com a leitora, por exemplo); dado que não, ficava solteiro e não perdia nada, porque o dinheiro era de outro. Confessem que era um bom negócio.
Eu até desconfio que há já quem faça isto mesmo, com a diferente de ficar com os libertos. Sabem que no tempo da escravidão, os escravos eram anunciados com muitos qualificativos honrosos, perfeito cozinheiros, ótimos copeiros, etc. Era, com outra fazenda, o mesmo que fazem os vendedores, em geral: superiores morins, lindas chitas soberbos cretones. Se os cretones, as chitas e os escravos se anunciassem' não poderiam fazer essa justiça a si mesmos.
Ora, li ontem um anúncio em que se oferece a aluguel. não m lembra em que rua,— creio que na do Senhor dos Passos,—uma insigne engomadeira. Se é falta de modéstia, eis aí um dos triste frutos da liberdade, mas se é algum sujeito que já se me antecipou. .
Larga Tchitchikof de meia tigela! Ou então vamos fazer o negócio a meias.
BOAS NOITES.
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[19 junho]
BONS DIAS!
Não gosto de ver censuras injustas. Há dias, um eminente senador disse que a Câmara dos Deputados era a câmara de dois domingos, e disse a verdade, porque ali um sábado e um domingo são a mesma cousa. Não a censurou por isso, entretanto, mas por adiar para o sábado os requerimentos, isto é, mandar-lhes o laço de seda com que eles se enforquem logo.
Sejamos justos. A Câmara, não fazendo sessão aos sábados, obedece a um alto fim político:—imitar a Câmara dos Comuns ingleses, que nesse dia também repousa. Deste modo, aproxima-nos da Inglaterra, berço das liberdades parlamentares, como dizia um mestre que tive e que me ensinou as poucas idéias com que vou acudindo as misérias da vida. Dele é que herdei a espada rutilante da injustiça,— o timeos Danaos,—o devolvo-lhe intacta a injúria, e outros vinténs mais ou menos magros.
Dir-me-ão que os comuns ingleses descansam no sábado, porque ficam estafados das sessões de oito, nove e dez horas, que é o tempo que elas duram nos demais dias.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Balas de estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1888–1889.