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#Contos#Literatura Brasileira

Astúcias de Marido

Por Machado de Assis (1886)

Esse resultado não se fez esperar. Não tardou muito que Ernesto não começasse a sentir que estava mal. Tanto bastou para que nunca mais pudesse dominar o animal. Este, como se pudesse conhecer o enfraquecimento do cavaleiro e os desejos secretos de Valentim, redobrou a violência dos seus movimentos. A cena tornou-se então mais séria. Um sorriso que pairava nos lábios de Ernesto desapareceu; o moço foi tomando uma posição grotesca quando só tinha presente a idéia de cair e não a idéia de que estava diante de mulheres, entre as quais estava Clarinha. Por mal dos pecados, se havia de cair como Hipólito, calado e nobre, começou a soltar uns gritos entrecortados. As damas assustaram-se, entre elas Clarinha, que mal podia dissimular o terror de que se achava possuída. Mas quando o cavalo, com um movimento mais violento, deitou o cavaleiro na relva, e que, depois de cair prosaicamente estendido, levantou-se sacudindo o paletó, houve uma grande gargalhada geral.

Então, Valentim, para tornar a situação de Ernesto mais ridícula ainda, mandou chegar o cavalo e montou.

— Aprende, olha, Ernesto.

E com efeito, Valentim, airoso e tranqüilo, sopeava os movimentos do animal e cumprimentava as senhoras. Foi uma tríplice bateria de aplausos. Nesse dia um foi o objeto das palmas de todos, como o outro fora o objeto da pateada geral. O próprio Ernesto, que ao princípio quis meter o caso à bulha, não pôde fugir depois à humilhação da sua derrota. Essa humilhação foi completa quando Clarinha, mais compadecida que despeitada com a situação dele, procurou consolá-lo da figura que fizera. Ele viu nas consolações de Clarinha uma confirmação à sua derrota. E não está bem o amante que inspira mais compaixão que amor.

Ernesto reconheceu por instinto esse desastroso inconveniente; mas como remediá-lo? Curvou a cabeça e protestou não cair noutra. E deste modo terminou a sua primeira humilhação como termina o nosso quarto capítulo.

V

Fazia anos o pai de Clarinha. A casa estava cheia de amigos e parentes. Havia uma festa de família com os parentes e os amigos para celebrar aquele dia.

Desde a cena do cavalo até o dia dos anos do velho, já Valentim tinha armado a Ernesto mais dois laços do mesmo gênero, cujo resultado era sempre expor o pobre rapaz ao motejo dos outros. Todavia, Ernesto não atribuía nunca intenções malignas ao primo, que era o primeiro a compungir-se dos infortúnios dele.

O dia do aniversário do sogro era para Valentim um dia excelente: mas que fazer? que nova humilhação, que novo ridículo preparar ao rapaz? Valentim, tão fértil de ordinário, não achava nada naquele dia.

O dia passou-se nos folguedos próprios de uma festa aniversária como aquela. A casa era fora da cidade. Folgava-se melhor.

À hora própria serviu-se um jantar esplêndido. O velho tomou a cabeceira da mesa, entre a filha e a irmã; seguiu-se Valentim e Ernesto, e o resto sem ordem de precedência. No meio da conversa animada que acompanhou o jantar desde o princípio, Valentim teve uma idéia e preparou-se para praticá-la à sobremesa. Entretanto, correram as saúdes mais cordiais e mais entusiásticas.

Notou-se, porém, que Ernesto do meio do jantar em diante ficara triste. Que seria? Todos perguntavam, ninguém sabia responder, nem mesmo ele, que teimava em recolher-se ao mais absoluto silêncio.

Valentim levantou-se então para fazer a saúde de Ernesto, e pronunciou algumas palavras de entusiasmo cujo efeito foi fulminante. Ernesto durante alguns minutos viu-se o objeto de aplausos que lhe valiam as pateadas da montaria.

Uma coisa o perdeu, e nisto estava o segredo de Valentim. Ernesto quis responder ao speech de Valentim. A tristeza que se lhe notara antes era o resultado de uma desastrada mistura de dois vinhos antipáticos. Forçado a responder por um capricho tomou o copo e respondeu ao primo. Daí em diante era ele o iniciador de todas as saúdes. Quando ninguém faltava para ser objeto dos seus speechs, fez uma saúde ao cozinheiro, que foi extremamente aplaudida.

Descreverei eu as cenas que se seguiram a esta? Fora entreter os leitores com algumas páginas repugnantes. Ernesto excedera-se no entusiasmo, e quando todos se levantavam da mesa e tomavam o caminho das outras salas, Ernesto desatou a chorar. Imaginem o efeito desta cena grotesca. Ninguém pôde conter o riso; mas também ninguém pôde estancar o pranto ao infeliz, que chorou ainda por espaço de duas horas.

VI

Uma noite havia reunião em casa de Valentim. Era puramente familiar. Meia dúzia de amigos e meia dúzia de parentes formavam toda a companhia. Às onze horas essa companhia estava reduzida a muito pequeno número.

Armou-se (para usar da expressão familiar), armou-se uma mesa de jogo em que Valentim tomou parte. Ernesto ao princípio não quis, estava amuado... Por quê? Parecia lhe ver em Clarinha uma frieza a que não estava acostumado. Finalmente aceitou; mas procurou tomar lugar em frente da mulher de Valentim; ela, porém, ou fosse por indiferença ou fosse adrede, retirou-se para a janela com algumas amigas. Abriu-se o jogo.

Em pouco tempo estavam os jogadores tão animados que as próprias senhoras foram-se aproximando do campo da batalha.

Os mais empenhados eram Valentim e Ernesto.

Tudo estava observando um curioso, mas tranqüilo interesse, quando de repente Valentim pára o jogo e diz para Ernesto:

— Não jogo mais!

(continua...)

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