Por Machado de Assis (1877)
O que pode fazer dobrar uma altivez destas? A beleza? Nem Cleópatra. A castidade? Nem Susana. Resuma, se quiser, todas as qualidades em uma só criatura e eu não mudarei... É isto e nada mais.
EMÍLIA
(à parte)
Veremos. (vai sentar-se)
TITO
(sentando-se)
Mas, não me dirá; que interesse tem na minha conversão?
EMÍLIA
Eu? Não sei... nenhum.
TITO
(pega no livro)
Ah!
EMÍLIA
Só se fosse o interesse de salvar-lhe a alma...
TITO
(folheando o livro)
Oh! essa... está salva!
EMÍLIA
(depois de uma pausa)
Está admirando a beleza dos versos?
TITO
Não senhora; estou admirando a beleza da impressão. Já se imprime bem no Rio de Janeiro. Aqui há anos era uma desgraça. V. Exa. há de conservar ainda alguns livros da impressão antiga...
EMÍLIA
Não, senhor; eu nasci depois que se começou a imprimir bem.
TITO
(com a maior frieza)
Ah! (deixa o livro)
EMÍLIA
(à parte)
É terrível! (alto, indo ao fundo) Aquele coronel ainda não acabaria de ler as notícias?
TITO
O coronel?
EMÍLIA
Parece que se embebeu todo no jornal... Vou mandar chamá-lo... Não chegará alguém?
TITO
(com os olhos cerrados)
Mande, mande...
EMÍLIA
(consigo)
Não, tu é que hás de ir. (alto) Quem me chamará o coronel? (à parte) Não se move!... (indo por trás da cadeira de Tito) Em que medita? No amor? Sonha com os anjos? (ameigando a voz) A vida do amor é a vida dos anjos... é a vida do céu... (vendo-o com os olhos, fechados) Dorme!... Dorme!...
TITO
(despertando, com espanto)
Dorme?... Quem? Eu?... Ah! o cansaço... (levanta-se) Desculpe... é o cansaço... cochilei... também Homero cochilava... Que há?
EMÍLIA
(séria)
Não há nada! (vai para o fundo)
TITO
(à parte)
Sim? (alto) Mas não me dirá?... (dirige-se para o fundo. Entra o coronel)
Cena VII
Os mesmos, CORONEL
CORONEL
(com a folha na mão)
Estou acerbo!
EMÍLIA
(com muito agrado e solicitude)
Que aconteceu?
CORONEL
Vou naturalmente para a Europa.
TITO
Morreu o urso no caminho?
CORONEL
Qual urso, nem meio urso! Rebentou uma revolução na Polônia!
EMÍLIA
Ah!...
TITO
Lá vai o coronel brilhar...
CORONEL
Qual brilhar!... (consigo) Esta só pelo diabo...
Cena VIII
Os mesmos, SEABRA, MARGARIDA
MARGARIDA
(a Emília)
Que é isso? (vendo-a preparar-se) Que é isso? Já te vais?
EMÍLIA
Já, mas volto amanhã.
MARGARIDA
É sério?
EMÍLIA
Muito sério.
TITO
(a Seabra)
A tal viagem da serra pôs-me entrompado. Ando dormindo em pé.
CORONEL
(a Margarida)
Até amanhã.
MARGARIDA
Que ar triste é esse?
CORONEL.
Fortunas minhas!
EMÍLIA
(a Margarida)
Temos muito que conversar. Até amanhã. (beijam-se. O coronel despede-se dos outros. Emília despede-se de Seabra e de Tito, mas com certa frieza)
Cena IX
MARGARIDA, SEABRA, TITO
MARGARIDA
Emília sai amuada. (a Tito) Que foi?
TITO
Não sei... ela é boa senhora; um pouco secantezinha... muito dada à poesia... ora eu sou todo da prosa... (batendo no estômago) Há prosa?
SEABRA
Ainda não jantaste? Anda jantar...
TITO
Vamos à prosa, vamos à prosa!
(Fim do 1º. ato.)
ATO SEGUNDO
(Sala em casa de Emília.)
Cena I
MARGARIDA, CORONEL
MARGARIDA
Ora viva!
CORONEL
(triste)
Bom dia, minha senhora!
MARGARIDA
Que ar triste é esse?
CORONEL
Ah! minha senhora... sou o mais infeliz dos homens...
MARGARIDA
Por quê? Venha sentar-se... (o coronel senta-se) Então, conte-me... Que há?
CORONEL
Duas desgraças. A primeira em forma de ofício da minha legação.
MARGARIDA
É chamado ao exército?
CORONEL,
Exatamente. A segunda em forma de carta.
MARGARIDA
De carta?
CORONEL,
(dando-lhe uma carta)
Veja isto. (Margarida lê e dá-lha de novo) Que me diz a isto?
MARGARIDA
Não compreendo...
CORONEL,
Esta carta é dela.
MARGARIDA
Sim, e depois?
CORONEL
É para ele.
MARGARIDA
Ele quem?
CORONEL
Ele! o diabo! o meu rival! o Tito!
MARGARIDA
Ah!
CORONEL
Dizer-lhe o que senti quando apanhei esta carta é impossível. Nunca tremi nem mesmo na Criméia, e olhe que estava feio! Mas quando li isto não sei que vertigem se apoderou de mim. Fez-me o efeito de um ucasse de desterro para a Sibéria. Ah! a Sibéria é um paraíso à vista de Petrópolis neste momento. Ando tonto! A cada passo como que desmaio... Ah!...
MARGARIDA
Ânimo!
CORONEL
É isto mesmo que eu vinha buscar... é uma consolação, uma animação. Soube que estava aqui e estimei achá-la só... Ah! quanto sinto que o estimável seu marido esteja vivo... porque a melhor consolação era aceitar V. Exa. um coração tão mal compreendido.
MARGARIDA
Felizmente ele está vivo.
CORONEL.
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877