Por Machado de Assis (1873)
José lemos ignorava até aquela data se era anfitrião; mas considerou que da parte de Porfírio não podia vir coisa má. Agradeceu sorrindo o que lhe pareceu cumprimento, enquanto se servia da gelatina que Justiniano Vilela dizia estar excelente.
As moças conversavam baixinho e sorrindo; os noivos estavam embebidos com a troca de palavras amorosas, ao passo que Rodrigo palitava os dentes com tal ruído, que a mãe não pode deixar de lhe lançar um desses olhares fulminantes que eram as suas melhores armas. – Quer gelatina, Sr. Calisto? perguntou José Lemos com a colher no ar.
– Um pouco, disse o homem de cara amarela.
– A gelatina é excelente! disse pela terceira vez o marido de D. Margarida, e tão envergonhada ficou a mulher com estas palavras do homem que não pode reter um gesto de desgosto.
– Meus senhores, disse o padrinho, eu bebo aos noivos.
– Bravo! disse uma voz.
– Só isso? perguntou Rodrigo; deseja-se uma saúde historiada.
– Mamãe: eu quero gelatina! disse o menino Antonico.
– Eu não sei fazer discursos: bebo simplesmente à saúde dos noivos.
Todos beberam.
– Quero gelatina! insistiu o filho de José Lemos.
D. Beatriz sentiu ímpetos de medéia; o respeito aos convidados impediu que ali houvesse uma cena grave. A boa senhora limitou-se a dizer a um dos serventes:
– Leva isto a nhonhô...
O Antonico recebeu o prato, e entrou a comer como comem as crianças quando não têm vontade: levava uma colherada à boca e demorava-se tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o paladar, ao passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa.
Enquanto se davam estes incidentes, em que ninguém realmente reparava, a conversa continuava seu caminho. O Dr. Valença discutia com uma senhora a excelência do vinho Xerez, e Eduardo Valadares recitava uma décima à moça que lhe ficava ao pé.
De repente levantou-se José Lemos.
– Sio! sio! sio! gritaram todos impondo silêncio.
José lemos pegou num copo e disse aos circunstantes:
– Não é, meus senhores, a vaidade de ser ouvido por tão notável assembléia que me obriga a falar. É um alto dever de cortesia, de amizade, de gratidão; um desses deveres que podem mais que todos os outros, dever santo, dever imortal.
A estas palavras a assembléia seria cruel se não aplaudisse. O aplauso não atrapalhou o orador, pela simples razão de que ele sabia o discurso de cor.
– Sim, senhores. Curvo-me a esse dever, que é para mim a lei mais santa e imperiosa. Eu bebo aos meus amigos, a estes sectários do coração, a estas vestais, tanto masculinas como femininas, do puro fogo da amizade! Aos meus amigos! à amizade!
Ao falar verdade, o único homem que percebeu a nulidade do discurso de José Lemos foi o Dr. Valença, que aliás não era águia. Por isso mesmo levantou-se e fez um brinde aos talentos oratórios do anfitrião.
Seguiu-se a estes dois brindes o silêncio de uso, até que Rodrigo dirigindo-se ao tenente Porfírio perguntou-lhe se havia deixado a musa em casa.
– É verdade! queremos ouvi-lo, disse uma senhora; dizem que fala tão bem! – Eu, minha senhora? respondeu Porfíro com aquela modéstia de um homem que se supõe um S. João Boca de Ouro.
Distribuiu-se o champanhe; e o tenente Porfírio levantou-se. Vilela, que se achava um pouco distante, pôs a mão em forma de concha atrás da orelha direita, ao passo que Calisto ficando um olhar profundo sobre a toalha parecia estar contando os fios do tecido. José lemos chamou a atenção da mulher, que nesse momento servia uma castanha gelada ao implacável Antonico; todos os mais estavam com os olhos no orador.
– Minhas senhoras! meus senhores! Disse Porfírio; não irei esquadrinhar no âmago da história, essa mestra da vida, o que era o himeneu nas priscas da humanidade. Seria lançar a luva do escárnio às faces imaculadas desta brilhante reunião. Todos nós sabemos, senhoras e senhores, o que é o himeneu. O himeneu é a rosa, rainha dos vergéis, abrindo as pétalas rubras, para amenizar os cardos, os abrolhos, os espinhos da vida...
– Bravo!
– Bonito!
– Se o himeneu é isto que eu acabo de expor aos vossos sentidos auriculares, não é mister explicar o gáudio, o fervor, os ímpetos de amor, as explosões de sentimento com que todos nós estamos à roda deste altar, celebrando a festa do nosso caro e prezadíssimo amigo.
José Lemos curvou a cabeça até tocar com a ponta do nariz numa pêra que tinha diante de si, enquanto D. Beatriz voltando-se para o Dr. Valença, que lhe ficava ao pé, dizia: – Fala muito bem! Parece um dicionário!
José Porfírio continuou:
– Sinto, senhores, não ter um talento digno do assunto...
– Não apoiado! está falando muito bem! disseram muitas vozes em volta do orador.
– Agradeço a bondade de V. Exas.; mas eu persisto na crença de que não tenho o talento capaz de arcar com um objeto de tanta magnitude.
– Não apoiado!
(continua...)
Caroline Alves em 26/10/2025