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#Contos#Literatura Brasileira

Almas Agradecidas

Por Machado de Assis (1871)

Magalhães nem sempre podia servir aos interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem caíra em graça, confiscava-o horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão. Um dia, Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar uma carta. — Ainda não, deixa-me preparar a coisa.

Oliveira acedeu.

A quem ler estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um cicerone.

Não é.

Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se conservava ignorante do que se passava dentro dele; e se assim praticava, era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com mulheres de outra classe.

Nada intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete anos.

Acresce que, se Magalhães era de opinião que ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era melhor não arriscar golpe sem certeza do resultado.

A dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira amizade?

Na primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de perscrutar o coração da moça.

Era de noite; havia gente em casa. 0liveira estava ausente. Magalhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com que uma senhora idosa entrara na sala.

Magalhães fazia a respeito do chapéu mil conjecturas burlescas.

— Aquele chapéu, dizia ele, parece-me um ressuscitado. Houve naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu aquele, acompanhado de outros seus irmãos. Aquele ressuscitou, para vir dizer a este mundo o que é o paraíso dos chapéus. Cecília reprimia uma risada.

Magalhães continuava:

— Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e como raridade. Isto era mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília. Repentinamente, Magalhães ficou sério e consultou o relógio.

— Já se vai embora? perguntou a moça.

— Não, senhora, disse Magalhães.

— Guarde então o relógio.

— Admira-me que Oliveira ainda não viesse.

— Virá mais tarde. Os senhores são muito amigos?

— Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma.

Houve um silêncio.

Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e disse: — Feliz aquela que o possuir.

A moça não revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam horas de tomar chá.

— Já amou, D. Cecília? perguntou Magalhães.

— Que pergunta é essa?

— É uma curiosidade.

— Nunca amei.

— Por quê?

— Sou muito criança.

— Criança!

Outro silêncio.

— Conheço alguém que a ama muito.

Cecília estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se levantou. Para sair, porém, da situação em que as palavras de Magalhães a deixara, disse rindo: — Essa pessoa... quem é?

— Quer saber o nome?

— Quero. É seu amigo?

— É.

— Diga o nome.

Outro silêncio.

— Promete não ficar zangada comigo?

— Prometo.

— Sou eu.

Cecília esperava ouvir outra coisa; esperava ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, havia percebido naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela. Da parte de Magalhães, não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de cólera, apenas surpresa.

A verdade é que ela não amava nenhum deles.

Não tendo a moça respondido logo, Magalhães disse com um sorriso benévolo: — Já sei que ama outro.

— Que outro?

— Oliveira.

— Não.

Era a primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave; penalizada com a idéia de que lhe houvesse com o silêncio causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse, Cecília disse ao fim de alguns minutos:

— O senhor está brincando comigo?

— Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto quiser, menos isso; não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo; responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança.

A moça não respondia.

— Não poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora remota. O papá é quem decide de mim, disse ela desviando a conversa.

— Pensa que eu sou desses corações que se contentam com o consentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu coração. Diga-me: posso esperar essa fortuna? — Talvez, murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa singela palavra.

VI

Era a primeira declaração que Cecília ouvia da boca de um homem. Não estava preparada para ela. Tudo o que ouvira lhe causara um inexplicável alvoroço. Posto que não amasse nenhum dos dois, apreciava ambos os rapazes, e não seria difícil que cedesse ao pedido de um deles e viesse a amá-lo apaixonadamente. Dos dois rapazes, o que mais depressa conseguiria vencer, dado o caso que se declarassem ao mesmo tempo, era sem dúvida Magalhães, cujo espírito galhofeiro e presença insinuante deviam influir mais no espírito da moça.

Minutos depois da cena narrada no capítulo anterior, já os olhos de Cecília procuravam os de Magalhães, mas rapidamente, sem se demorar neles; todos os sintomas de um coração que não se demorará em ceder.

(continua...)

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