Por Machado de Assis (1885)
— Se é a verdadeira, haveria um meio de conciliar tudo, era irem ambos, e eu com ambos, e para mim seria um imenso prazer.
— Eu?
— Pois então?
— Eu? Deixar esta casa? Vossa Reverendíssima está caçoando. Daqui para a cova. Não fui quando era moça, e agora que estou velha é que hei de meter-me em folias... Ele sim, que é rapaz,—e precisa...
Tive uma suspeita súbita:
—Minha senhora, dar-se-á que ele padeça de alguma moléstia que…
— Não, não, graças a Deus! Digo que precisa, porque é rapaz, e meu avô dizia que, para ser homem completo, é preciso ver aquelas cousas por lá. E só por isso. Não, não tem moléstia nenhuma; é um rapaz forte.
Era impossível, ou, pelo menos, indelicado tentar obter a razão secreta deste pedido, se havia alguma, como me pareceu. Pus termo à conversação dizendo que ia convidar o rapaz. D. Antônia agradeceu-me, declarou que não, me havia de arrepender do companheiro, e fez grandes elogios do filho. Quis falar de outras cousas; ela, porem, teimava no assunto da viagem, para familiarizar-mos com a idéia, e moralmente constranger-me a realizá-la. No dia seguinte voltou à biblioteca, mas com outro pretexto: veio mostrar-me uma boceta de rapé, que fora do marido, e que era, realmente, uma perfeição. Não tive dúvida em dizer-lhe isto mesmo, e ela acabou pedindo-me que a aceitasse como lembrança do finado. Aceitei-a constrangido; falamos ainda da viagem, duas palavras apenas, e fiquei só.
Não estava contente comigo. Tinha-me deixado resvalar a uma promessa inconsiderada, cuja execução parecia complicar-se de circunstâncias estranhas e obscuras, provavelmente sérias. As instâncias de D. Antônia, as razões dados, as reticências, e finalmente aquele mimo, sem outro motivo mais que cativar-me e obrigar-me, tudo isso dava que cismar. Na noite desse dia fui à casa do Padre Mascarenhas para sondá-lo; perguntei-lhe se sabia alguma cousa do rapaz, se era peralta, se tinha irregularidades na vida. Mascarenhas não sabia nada.
— Até aqui suponho que é um modelo de sossego e seriedade, concluiu ele. Verdade seja que só vou lá aos domingos.
— Mas pelos domingos tiram-se os dias santos, repliquei rindo.
Félix voltou da roga dous dias depois, num sábado. No domingo não fui lá. Na segunda-feira, falei-lhe da viagem que ia fazer, e do desejo que tinha de o levar comigo; respondeu que seria para ele um grande prazer, se pudesse acompanhar-me, mas não podia. Teimei, pedi-lhe razões, falei com tal interesse, que ele, desconfiado, fitou-me os olhos, e disse:
— Foi mamãe que lhe pediu.
— Não digo que não; foi ela mesma. Tinha-lhe dito que tencionava ir à Europa, daqui a alguns meses, e ela então falou-me do senhor e das vezes que já lhe tem aconselhado uma viagem. Que admira?
Félix conservou os olhos espetados em mim, como se quisesse descer ao fundo da minha consciência. Ao cabo de alguns instantes respondeu secamente:
—Nada: não posso ir.
—Por quê?
Aqui teve ele um gesto quase imperceptível de orgulho molestado; achou naturalmente esquisita a curiosidade de um estranho. Mas, ou fosse da índole dele, ou do meu caráter sacerdotal, vi desaparecer-lhe logo esse pequeno assomo; Félix sorriu e confessou que não podia separar-se da mãe. Eu, a rigor, não devia dizer mais nada, e encerrar-me no exame dos papéis; mas a maldita curiosidade picava-me de esporas, e ainda repliquei alguma cousa; ponderei-lhe que o sentimento era digno e justo, mas que, tendo de viver com os homens, devia começar por ver os homens, e não restringir-se à vida simples e emparedada da família. Demais, o contacto de outras civilizações necessariamente nos daria têmpera ao espírito. Escutou calado, mas sem atenção fixa, e quando acabei, declarou ultimando tudo:
—Bem, pode ser que me resolva; veremos. Não vai já? Então depois falaremos disto; pode ser... E o seu trabalho, está adiantado?
Não insisti, nem voltei ao assunto, apesar da mãe, que me falou algumas vezes dele. Pareceu-me que o melhor de tudo era acelerar a conclusão do trabalho, e despregar-me de uma intimidade que podia trazer complicações ou desgostos. As horas que então passei foram das melhores, regulares e tranqüilas, ajustadas a minha índole quieta e eclesiástica. Chegava cedo, conversava alguns minutos, e recolhia-me à biblioteca até a hora de jantar, que não passava das duas.
O café ia à grande varanda, que ficava entre a sala de jantar e o terreiro das casuarinas, assim chamado, por ter um lindo renque dessas árvores, e eu retirava-me antes do pôr do sol. Félix ajudava-me grande parte do tempo. Tinha todas as horas livres, e quando não me ajudava é porque saira a caçar, ou estava lendo, ou teria ido à cidade a passeio ou a negócio de a passeio ou a negócio de casa.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casa Velha. A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, Rio de Janeiro, 1885-1886.