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#Contos#Literatura Brasileira

Almas Agradecidas

Por Machado de Assis (1871)

— Não te zangues, disse MagaLhães. Eu não sou nenhum espírito rasteiro; também, conheço as delicadezas do coração. Nada vale mais que um amor verdadeiro e desinteressado. Não se me há de censurar, porém, que eu procure ver o lado prático das coisas; um coração de ouro vale muito; mas um coração de ouro com ouro vale mais. — Cecília é rica.

— Pois tanto melhor!

— Afianço-te, porém, que essa consideração...

— Não precisas afiançar nada; eu bem sei o que vales, disse Magalhães apertando as mãos de Oliveira. Anda, meu amigo, não te detenho; procura a tua felicidade. Animado por estes conselhos, tratou Oliveira de sondar o terreno para declarar a sua paixão. Omiti de propósito a descrição de Cecília feita por Oliveira ao seu amigo Nagalhães. Não desejava exagerar aos olhos dos leitores a beleza da moça, que a um namorado parece sempre maior do que realmente é. Mas Cecília era realmente formosa. Era uma beleza, uma flor em toda a extensão da palavra. Todas as forças e fulgores da mocidade estavam nela, que apenas saía da adolescência e parecia anunciar longa e esplêndida juventude. Não era alta, mas também não era baixa. Era acima de meã. Era muito corada e viva; tinha uns olhos brilhantes e buliçosos, olhos de namorada ou namoradeira; era talvez um pouco afetada, mas deliciosa; tinha certas exclamações que lhe ficavam bem nos seus lábios finos e úmidos.

Oliveira não viu logo todas estas coisas na noite em que lhe falou; mas não tardou que ela se lhe revelasse assim, desde que começou a freqüentar a casa dela. Nisto, era Cecília ainda um pouco criança; não sabia dissimular, nem era difícil captar-lhe a confiança. Mas, através das aparências de frivolidade e volubilidade, descobria-lhe Oliveira sólidas qualidades de coração. O contacto redobrou o seu amor. No fim de um mês, Oliveira parecia perdido por ela.

Magalhães continuava a ser o conselheiro de Oliveira e o seu único confidente. Um dia, pediu-lhe o namorado que fosse com ele à casa de Cecília.

— Tenho medo, disse Magalhães.

— Por quê?

— Sou capaz: de precipitar tudo, e isso não sei se será conveniente antes de conhecer bem o terreno. Em qualquer caso, não é mau que eu vá examinar por mim mesmo as coisas. Irei quando quiseres.

— Amanhã?

— Seja amanhã.

No dia seguinte, Oliveira apresentou Magalhães em casa do comendador Vasconcelos. — É o meu melhor amigo, disse Oliveira.

Na casa de Vasconcelos, já estimavam o advogado; esta apresentação bastava para recomendar Magalhães.

V

O comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos tinha um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível compreender aquele velho sem aquele estouvamento.

Contava já seus cinqüenta e oito anos, e andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga que, desde os quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a sra. D. Mariana houvesse casado com ele.

D. Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casamento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo. Pelo que, rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas qualidades, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo. Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara alternadamente com os conservadores e os liberais para contentar os amigos que tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades.

Quando a acusavam deste ceticismo político, respondia com uma frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o seu patriotismo:

— Somos todos brasileiros.

Quadrava o gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimidade não tardou muito. Já sabemos que o amigo de Oliveira tinha a grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D.

Mariana chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador.

Para os fins de Oliveira era excelente.

Não se descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança. Parece-me ser, disse ela, um excelente coração. — Afirmo que o é, disse Magalhães; conheço-o há muito tempo.

Quando Oliveira soube destas palavras, que não eram muita coisa, ficou muito animado. — Creio que posso ter esperanças, disse ele.

— Nunca te disse outra coisa, respondeu Magalhães.

(continua...)

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