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#Contos#Literatura Brasileira

A Parasita Azul

Por Machado de Assis (1872)

Soares atirou à rede e adormeceu.

O tropeiro cessou de cantar, e dentro de pouco tempo tudo era silêncio no pouso. Camilo ficou sozinho diante da noite, que estava realmente formosa e solene. Não faltava ao jovem goiano a inteligência do belo; e a quase novidade daquele espetáculo, que uma longa ausência lhe fizera esquecer, não deixava de o impressionar imensamente.

De quando em quando chegavam aos seus ouvidos urros longínquos, de alguma fera que vagueava na solidão. Outras vezes eram aves noturnas, que soltavam ao perto os seus pios tristonhos. Os grilos, e também as rãs e os sapos formavam o coro daquela ópera do sertão, que o nosso herói admirava decerto, mas à qual preferia indubitavelmente a ópera cômica.

Assim esteve longo tempo, cerca de duas horas, deixando vagar o seu espírito ao sabor das saudades, e levantando e desfazendo mil castelos no ar. De repente foi chamado a si pela voz de Soares, que parecia vítima de um pesadelo. Afiou o ouvido e escutou estas palavras soltas e abafadas que o seu companheiro murmurava:

– Isabel... querida Isabel... Que é isso?... Ah! meu Deus! Acudam!

As últimas sílabas eram já mais aflitas que as primeiras. Camilo correu ao companheiro e fortemente o sacudiu. Soares acordou espantado, sentou-se, olhou em roda de si e murmurou: – Que é?

– Um pesadelo.

– Sim, foi um pesadelo. Ainda bem! Que horas são?

– Ainda é noite.

– Já está levantado?

– Agora é que me vou deitar. Durmamos que é tempo.

– Amanhã lhe contarei o sonho.

No dia seguinte, efetivamente, logo depois das primeiras vinte braças de marcha, referiu Soares o terrível sonho de véspera.

– Estava eu ao pé de um rio, disse ele, com a espingarda na mão, espiando as capivaras. Olho casualmente para a ribanceira que ficava muito acima, do lado oposto, e vejo uma moça montada num cavalo preto, e com os cabelos, que também eram pretos, caídos sobre os ombros...

– Era tudo uma escuridão, interrompeu Camilo.

– Espere; admirei-me de ver ali, e por aquele modo, uma moça que me parecia franzina e delicada. Quem pensava o senhor que era?

– A Isabel.

– A Isabel. Corri pela margem adiante, trepei acima de uma pedra fronteira ao lugar onde ela estava, e perguntei-lhe o que fazia ali. Ela esteve algum tempo calada. Depois, apontando para o fundo do grotão disse:

– “O meu chapéu caiu lá embaixo.

– Ah!

– O senhor ama-me? disse ela passados alguns minutos.

– Mais que a vida.

– Fará o que eu lhe pedir?

– Tudo.

– Bem, vá buscar o meu chapéu.”

Olhei para baixo. Era um imenso grotão em cujo fundo fervia e roncava uma água barrenta e grossa. O chapéu, em vez de ir com a corrente por ali abaixo até perder-se de todo, ficara espetado na ponta de uma rocha, e lá do fundo parecia convidar-me a descer. Mas era impossível. Olhei para todos os lados, a ver se achava algum recurso. Nenhum havia...

– Veja o que é a imaginação escaldada! observou Camilo.

– Já eu procurava algumas palavras com que dissuadisse Isabel da terrível idéias, quando senti pousar-me uma mão no ombro. Voltei-me; era um homem; era o senhor. – Eu?

– É verdade. O senhor olhou para mim com um ar de desprezo, sorriu para ela e depois olhou para o abismo. Repentinamente, sem que eu possa dizer como, estava o senhor em baixo e estendia a mão para tirar o chapelinho fatal.

– Ah!

– A água, porém, engrossando subitamente, ameaçava submergi-lo. Então Isabel, soltando um grito de angústia, esporeou o cavalo e atirou-se pela ribanceira abaixo. Gritei... chamei por socorro;

– Tudo foi inútil. Já a água os enrolava em suas dobras... quando fui acordado pelo senhor. Leandro Soares concluiu esta narração do seu pesadelo, parecendo ainda assustado do que lhe acontecerá... imaginariamente. Convém dizer que ele acreditava nos sonhos. – Veja o que é uma digestão mal feita! exclamou Camilo quando o comprovinciano terminou a narração. Que porção de tolices! O chapéu, a ribanceira, o cavalo, e mais que tudo a minha presença nesse melodrama fantástico, tudo isso é obra de quem digeriu mal o jantar. Em Paris há teatros que representam pesadelos assim, - piores do que o seu porque são mais compridos. Mas o que vejo também é que essa moça não o deixa nem dormindo.

– Nem dormindo!

Soares disse estas duas palavras quase como um eco, sem consciência. Desde que concluíra a narração, e logo depois das primeiras palavras de Camilo, entrara a fazer consigo uma série de reflexões que não chegaram ao conhecimento do autor desta narrativa. O mais que lhes posso dizer é que não eram alegres, porque a fonte lhe descaiu, enrugou-se-lhe a testa, e ele, cravando os olhos nas orelhas do animal, recolheu-se a um inviolável silêncio.

(continua...)

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