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#Contos#Literatura Brasileira

Brincar com Fogo

Por Machado de Assis (1875)

O pai de Lúcia e a mãe de Mariquinhas, que até agora não entraram no conto, nem entrarão daqui em diante, por não serem precisos, admiravam-se da mudança que notavam nas filhas. Ambas estavam mais sérias do que nunca. Há namoro, concluíram eles, e cada um por sua parte procurou sondar o coração que lhe dizia respeito. As duas moças confessaram que efetivamente amavam a um mancebo dotado de eminentes qualidades e merecedor de entrar na família. Obtiveram consentimento para fazer com que o mancebo de eminentes qualidades chegasse à fala. Imagine o leitor o grau de contentamento das duas moças. Logo nesse dia cada uma delas tratou de escrever a João dos Passos dizendo que podia ir pedi-la em casamento. Tenha paciência o leitor e continue a imaginar a surpresa de João dos Passos quando recebeu as duas cartas contendo a mesma coisa. Um homem que, ao partir um ovo cozido visse sair de dentro um elefante, não ficaria mais assombrado do que o nosso João dos Passos.

Sua primeira idéia foi uma suspeita. Desconfiou que ambas lhe armassem uma cilada, de acordo com as famílias. Repeliu porém a suspeita, refletindo que em nenhum caso, o pai de uma e a mãe de outra consentiriam no meio empregado. Compreendeu que era amado igualmente de uma e outra, explicação que o espelho confirmou eloqüentemente quando ele lhe lançou um olhar interrogativo.

Que faria ele em tal situação?

Era a ocasião da escolha.

João dos Passos considerou o assunto por todos os lados. As duas moças eram as mais belas do bairro. Não tinham dinheiro, mas essa consideração desaparecia desde que ele pudesse meter inveja a meio mundo. A questão era saber a qual delas daria a preferência.

A Lúcia?

A Mariquinhas?

Resolveu estudar o caso mais detidamente; mas como era necessário mandar imediata resposta, escreveu duas cartas, uma para Mariquinhas, outra para Lúcia, pretextando uma demora indispensável.

As cartas foram.

A que ele escreveu a Lúcia dizia assim:

Minha querida Lúcia.

Não imaginas o contentamento que me deste com a tua carta. Vou enfim obter a maior graça do céu, a de poder chamar-te minha esposa!

Vejo que estás mais ou menos autorizada por teu pai, esse honrado ancião, de quem serei filho amante e obediente.

Obrigado!

Devia ir hoje mesmo à tua casa e pedir-te em casamento. Uma circunstância, porém, me impede de o fazer. Apenas ela desapareça, e nunca irá além de uma semana, corro à ordem que o céu me envia pela mão de um dos seus anjos.

Ama-me como eu te amo.

Adeus!

Teu, etc.

A carta dirigida a Mariquinhas era deste teor:

Minha Mariquinhas do meu coração.

Faltam-me palavras para dizer o júbilo que me deu a tua carta. Eu era um desgraçado até há poucos meses. Repentinamente a felicidade começou a sorrir-me, e agora (oh! céus!) lá me acena com a maior ventura da terra, a de ser teu esposo.

Estou certo de que a tua respeitável mãe de algum modo te insinuou o passo que deste. Boa e santa senhora! Anseio por chamá-la mãe, por adorá-la de joelhos! Não posso, como devia, ir hoje mesmo à tua casa.

Há uma razão que mo impede.

Descansa, que é razão passageira. Antes de oito dias lá estarei, e se Deus nos não tolher

o passo, dentro de dois meses estaremos esposos.

Oh! Mariquinhas, que felicidade!

Adeus!

Teu, etc.

Ambas estas cartas traziam um post-scriptum, marcando a hora em que nessa noite ele passaria pela casa delas. A hora de Lúcia era às sete, a de Mariquinhas às oito. As cartas foram entregues ao portador e levadas ao seu destino.

VI

Neste ponto da narrativa, qualquer outro que não prezasse a curiosidade da leitora, intercalaria um capítulo de considerações filosóficas, ou diria alguma coisa a respeito do namoro na antigüidade.

Eu não quero abusar da curiosidade da leitora. Minha obrigação é dizer que desenlace teve esta complicada situação.

As cartas foram, mas foram erradas; a de Lúcia foi entregue a Mariquinhas, e a de Mariquinhas a Lúcia.

Não tenho forças para pintar o desapontamento, a raiva, o desespero das duas moças, e muito menos os faniquitos que sobrevieram à crise, coisa indispensável em tal situação. Se se achassem debaixo do mesmo teto é possível que o obituário fosse enriquecido com os nomes das duas belas moças. Felizmente cada uma delas estava em sua casa, pelo que tudo se passou menos tragicamente.

Os nomes que elas chamaram ao ingrato e pérfido gamenho, podiam escrever-se se houvesse papel suficiente. Os que elas disseram uma da outra orçavam pela mesma quantidade. Nisto gastaram os oito dias de prazo marcado por João dos Passos. Notou este, logo na primeira noite, que nenhuma delas o esperou à janela conforme fora marcado. No dia seguinte sucedeu a mesma coisa.

João dos Passos indagou o que havia. Soube que as duas moças estavam incomodadas e de cama. Ainda assim não atinou com a causa, e limitou-se a mandar muitas lembranças, que os portadores aceitaram docilmente, apesar de terem ordem positivamente de não receberem nenhum recado mais. Há casos porém em que um portador de cartas desobedece; um deles é o caso de remuneração e foi esse o caso de João dos Passos.

(continua...)

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