Por Machado de Assis (1871)
Carlota alegou triunfalmente um dos dez mandamentos da lei de Deus; mas o sócio de Vergueiro fez uma tão complicada interpretação do texto bíblico, e falou com tanta convicção, que o espírito de Carlota não achou resposta suficiente, e aqui parou a discussão.
A que se não acostuma o coração humano? Lançada a má semente no coração da moça, depressa germinou, e o plano secreto passou a ser assunto de conversa entre os três conjurados.
A execução do plano começou e prosseguiu com espantosa felicidade. A firma Ayres & Vergueiro era tão honrada, que os portadores de letras e outros títulos, e até os que não tinham títulos, foram aceitando todas as delongas que os dois sócios lhes pediam. As fazendas começaram a ser vendidas a resto de barato, não por anúncio, o que seria dar na vista, mas por informação particular que passava de boca em boca. Nestas e noutras ocupações se abismava o saudoso espírito de Pedro Ayres, já agora deslembrado da desditosa Luísa. Que querem? Nada é eterno neste mundo. Nada liga mais fortemente os homens que o interesse; a cumplicidade dos dois sócios apertou os vínculos da sua proverbial amizade. Era ver como eles delineavam entre si o plano da vida que os esperava quando estivessem fora do Império. Protestavam gozar do dinheiro sem recorrer às alternativas do comércio. Além dos prazeres comuns, Vergueiro possuía os do coração.
— Tenho Carlota, dizia ele, que é um anjo. E tu, meu Ayres? Por que te não casarás também?
Ayres desatou do peito um suspiro e disse com voz trêmula:
— Casar? Que mulher há mais neste mundo que possa fazer a minha felicidade? Ditas estas palavras com outra sintaxe que eu não reproduzo por vergonha, o desditoso Ayres sufocou dois ou três soluços e fitou os olhos no ar; depois coçou o nariz e olhou para Vergueiro:
— Olha, eu não me considero solteiro; não importa que tua irmã morresse; estou casado com ela; separa-nos apenas o túmulo.
Vergueiro apertou com entusiasmo as mãos do sócio e aprovou a nobreza daqueles sentimentos.
Quinze dias depois desta conversa, Vergueiro chamou Ayres e disse que era necessário pôr termo ao plano.
— É verdade, disse Ayres, as fazendas estão quase todas vendidas. — Subamos.
Subiram e foram ter com Carlota.
— Vou para Buenos Aires, começou Vergueiro.
Carlota empalideceu.
— Para Buenos Aires? perguntou Ayres.
— Crianças! exclamou Vergueiro, deixem-me acabar. Vou para Buenos Aires com o pretexto de negócios comerciais; vocês demoram-se aqui um a dois meses; vendem o resto, põem o dinheiro a bom recado, e partem para lá. Que lhes parece? — A idéia não é má, observou Ayres, mas está incompleta.
— Como?
— A nossa ida deve ser pública, explicou Ayres; eu declararei a todos que tu estás doente em Buenos Aires e que mandas buscar tua mulher. Como alguém há de acompanhá-la, irei eu, prometendo voltar daí a um mês; a casa fica aí com o caixeiro, e... o resto... creio que não preciso dizer o resto.
— Sublime! exclamou Vergueiro; isto é que se chama estar adiante do século. Assentado isto, anunciou aos amigos e credores que uma operação comercial o levava ao Rio da Prata; e tomando passagem no brigue Condor deixou para sempre as plagas da Guanabara.
Não direi aqui as saudades que sentiram aqueles dois íntimos amigos, quando se separaram, nem as lágrimas que verteram, lágrimas dignas de inspirar mais adestradas penas do que a minha. A amizade não é um nome vão.
Carlota não menos sentiu aquela separação, posto fosse de pequeno prazo. Os amigos da firma Ayres & Vergueiro viram bem o que era um quadro de verdadeira afeição. Ayres não era pêco, apressou a venda das fazendas, realizou em boa prata o dinheiro da caixa, e antes de seis semanas recebeu de Buenos Aires uma carta em que Vergueiro dizia que estava de cama, e pedia a presença de sua querida mulher. A carta terminava assim: “
O plano era excelente, e Vergueiro, lá em Buenos Aires, esfregava as mãos de prazer saboreando os aplausos que receberia do amigo e sócio pela idéia de disfarçar a letra. Ayres aplaudiu efetivamente a idéia, e não menos a aplaudiu a amável Carlota. Determinaram, entretanto, não sair com a publicidade assentada no primeiro plano, em vista da qual o sagaz Vergueiro escrevera a referida carta. Talvez mesmo já esse projeto fosse anterior.
O certo é que daí a dez dias, Ayres, Carlota e o dinheiro saíram furtivamente... para a Europa.
Baixar texto completo (.txt)ASSIS, Machado de. Ayres e Vergueiro. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1871.