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#Contos#Literatura Brasileira

Astúcias de Marido

Por Machado de Assis (1886)

Os dois estavam assentados em bancos de junco, colocados sobre um chão de relva; uma espécie de parede composta de trepadeiras formava por assim dizer o fundo do quadro. Perto ouvia-se o murmúrio de um regato que atravessava a chácara. Finalmente duas rolas brincavam a dez passos do chão.

Como se vê, a cena pedia uma conversação adequada em que se falasse de amor, de esperanças, de ilusões, enfim, de tudo quanto pudesse varrer da memória a boa prosa da vida.

Mas em que conversavam os dois? A descrição fez-nos perder as primeiras palavras do diálogo; mal podemos pilhar uma interrogação de Valentim.

— Mas, então, não és feliz? perguntou ele.

— Sou, respondeu a moça.

— Como dizes isso! parece que respondes a uma interrogação da morte! Um triste sorriso passou pelos lábios de Clarinha.

Seguiu-se um breve silêncio, durante o qual Valentim considerava as botas e Clarinha analisava a barra do vestido.

— Pois olha, não me falta vontade... disse Valentim.

— Vontade de quê?

— De fazer-te feliz;

— Ah!

— Nem foi para outra coisa que eu te fui buscar à casa de teu pai. Amo-te muito, mas se eu soubera que tu não correspondias com o mesmo amor desistiria do meu intento, porque para mim é um duplo remorso ver o objeto de meu amor triste e desconsolado. — Parece-te isso!

— E não é?

— Não é.

Clarinha procurou dar a esta última resposta uma expressão da maior ternura; mas se ela tivesse pedido um copo d’água teria empregado a mesmíssima expressão. Valentim respondeu com um suspiro.

— Não sei como queres que eu te diga as coisas!

— Não quero nada; desde que eu te impusesse um modo de falar pode ser que eu me arrufasse menos, mas não era diversa a minha situação.

Clarinha levantou-se.

— Anda passear.

Valentim obedeceu, mas obedeceu maquinalmente.

— Então, ainda estás triste?

— Ah! se tu me amasses, Clarinha! respondeu Valentim.

— Pois não te ... amo?

Valentim olhou para ela e murmurou:

— Não!

Valentim deu o braço a Clarinha e foram passear pelo jardim, dos mais bem arrumados e plantados da capital; a enxada, a tesoura e a simetria ajudavam ali o nascimento das rosas. A tarde caía, o céu tomava essa cor de chumbo que inspira tanta melancolia e convida a alma e o corpo ao repouso. Valentim parecia não ver nada disso; estava diante do seu tremendo infortúnio.

Clarinha, por seu lado, procurava distrair o marido, substituindo por algumas palavras de terno interesse o amor que lhe não tinha.

Valentim respondia por monossílabos ao princípio; depois a conversa foi-se empenhando e ao cabo de meia hora já Valentim mostrava-se menos sombrio, Clarinha procurava por esse modo acalmar o espírito do marido, quando ele insistia na conversação que ouvimos há pouco.

Uma coruja que acaba de cantar agora à janela traz-me à memória que eu devia apresentar em cena neste momento a tia de Clarinha.

Entra, portanto, a tia de Clarinha. Vem acompanhada de um moleque vestido de pajem. A moça vai lançar-se-lhe aos braços, e Valentim encaminha-se para ela com passo regular, para dar tempo às efusões de amizade. Mas aquele mesmo espetáculo da afeição que ligava a tia à sobrinha, a espontaneidade com que esta correra a receber àquela, mais o entristecia, comparando o que Clarinha era há pouco e o que era agora. Findos os primeiros cumprimentos entraram todos em casa. A boa velha vinha passar oito dias com a sobrinha; Valentim fez um gesto de desgosto; mas a moça manifestou uma grande alegria com a visita da tia.

Valentim retirou-se para o seu gabinete e deixou às duas plena liberdade. À mesa do chá falou-se de muita coisa; Clarinha indagava de tudo quanto era da casa do pai. Este devia vir no dia seguinte jantar com o genro.

Valentim pouco falou.

Mas lá para o meio do chá, Clarinha voltou-se para a tia e perguntou com certa timidez o que era feito de Ernesto. A moça procurou dar à pergunta o tom mais inocente do mundo; mas tão mal o fez que despertou a atenção do marido.

— Ah! respondeu a tia; está bom, isto é... está doente.

— Ah! de quê? perguntou a moça empalidecendo.

— De umas febres...

Clarinha calou-se, pálida como a morte.

Valentim tinha os olhos fixos nela. Um sorriso, meio de satisfação, meio de ódio, pairava lhe nos lábios. Enfim o marido descobrira o segredo da reserva da mulher. Seguiu-se um longo silêncio da parte de ambos, só interrompido pelo palavreado da tia, que afinal, depois de fazer algumas perguntas aos dois sem obter resposta, decidiu-se a reclamar contra aquele silêncio.

— Estamos ouvindo, minha tia, disse Valentim.

E tão significativas foram aquelas palavras, que Clarinha olhou para ele assustada. — Estamos ouvindo, repetiu Valentim.

— Ah! pois bem... Como ia dizendo...

A conversa continuou até o fim do chá. Às onze horas todos se recolheram aos seus aposentos. É a melhor ocasião para terminar o terceiro capítulo e deixar que o leitor acenda um novo charuto.

IV

A tia de Clarinha não se demorou oito dias em casa da sobrinha, demorou-se quinze dias. A boa velha estava encantada com o agasalho que encontrara aí.

(continua...)

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