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#Contos#Literatura Brasileira

A Mágoa do Infeliz Cosme

Por Machado de Assis (1875)

- O que o senhor diz é exato, observou Cosme, se atendermos unicamente à razão; mas tão entranhado se acha o sentimento no coração do homem, que eu vendi tudo, menos uma coisa. Quis que, ao menos isso, me ficasse até a morte; tão certo é que o coração tem seus motivos e argumentos especiais...

- Oh! sem dúvida! disse Oliveira. Metade das coisas deste mundo são regidas pelo sentimento. Em vão procuramos furtar-nos a ele... Ele é mais forte do que os nossos débeis raciocínios.

Cosme fez uma leve inclinação de cabeça, e ia metendo a mão na algibeira do paletó, para tirar a jóia aludida, quando um escravo veio anunciar que o jantar estava na mesa. - Vamos jantar, disse Cosme; à mesa lhe mostrarei o que é.

V

Saíram do gabinete para a sala de jantar. A sala de jantar ainda mais entristeceu o amigo do infeliz Cosme. Tantas vezes jantara ali em companhia dela, tantas contemplara ali os seus olhos, tantas ouvira as suas palavras!

O jantar era farto, como de costume. Cosme deixou-se cair numa cadeira, enquanto Oliveira tomava assento ao pé dele. Um criado serviu a sopa, que o infeliz viúvo comeu apressadamente, não sem observar ao amigo, que era a primeira vez que realmente tinha vontade de comer.

Não era difícil de crer que assim devia de ser após seis semanas de quase total abstinência, ao ver a celeridade com que o infeliz Cosme varria os pratos que lhe punham diante dele.

Terminada a sobremesa, Cosme ordenou que o café fosse levado ao gabinete, onde Oliveira teve ocasião de ver a jóia que a saudade de Cosme impedira de ser vendida como as outras.

Era um alfinete de esmeralda perfeito; mas a perfeição da obra não era o que lhe dava todo o valor, como observou o infeliz Cosme.

Oliveira não pôde reter um grito de surpresa.

- O que é? perguntou o dono da casa.

- Nada.

- Nada?

- Uma lembrança.

- Diga o que é.

- Esse alfinete quis eu comprar, no ano passado, em casa de Farani. Não foi lá que o comprou?

- Foi.

- Que singularidade!

- Singularidade?

- Sim; eu quis comprá-lo justamente para dar à minha irmã no dia em que fazia anos. Disseram-me que estava vendido. Era ao senhor.

- Era a mim. Não me custou barato; mas que me importava isso, se era para ela? Oliveira continuou a examinar o alfinete. De repente exclamou.

- Ah!

- Que é?

- Lembra-me ainda outra circunstância, disse Oliveira. Eu já sabia que este alfinete tinha sido comprado pelo senhor.

- Disse-lho ela?

- Não, minha irmã. Um dia em que aqui estivemos, minha irmã viu este alfinete no peito de D. Carlota, e gabou-o muito. Ela disse-lhe então que o senhor lho dera um dia em que foram à Rua dos Ourives, e ela ficara encantada com esta jóia... Se soubesse como eu praguejei nessa ocasião contra o senhor!

- Não lhe parece muito bonito?

- Oh! lindíssimo!

- Ambos nós gostávamos muito dele. Pobre Carlota! Nem por isso deixava de amar a simplicidade. A simplicidade era o seu principal dote; este alfinete, de que tanto gostava, só o pôs duas vezes, creio eu. Um dia altercamos por causa disso; mas, já se vê, altercação de namorados. Eu disse-lhe que era melhor não comprar jóias, se ela as não havia de trazer, e acrescentei, brincando, que me daria muito gosto, se mostrasse que tinha bens de fortuna. Gracejos, gracejos, que ela ouvia a rir e acabávamos ambos alegres... Pobre Carlota!

Durante este tempo, Oliveira contemplava e admirava o alfinete, com o coração palpitante, como se tivesse ali um pedaço do corpo que se fora. Cosme olhava atentamente para ele. Seus olhos faiscavam às vezes; outras vezes pareciam apagados e sombrios. Seriam ciúmes póstumos? O coração do viúvo adivinharia o amor culpado, ainda que respeitoso, do amigo?

Oliveira surpreendeu o olhar do infeliz Cosme e prontamente lhe entregou o alfinete. - Ela queria muito à sua irmã, disse o desventurado viúvo depois de alguns instantes de silêncio.

- Oh! muito!

- Conversávamos muita vez a respeito dela... Tinham a mesma idade, penso eu? - D. Carlota era mais moça dois meses.

- Pode-se dizer que era a mesma idade. Às vezes pareciam-se duas crianças. Quantas vezes ralhei graciosamente com ambas; riam-se e zombavam de mim. Se soubesse com que satisfação as via brincar! Nem por isso era Carlota menos grave, e sua irmã, também, quando convinha que o fossem.

O infeliz Cosme continuou assim a elogiar ainda uma vez os dotes da finada esposa, com a diferença que, desta vez, acompanhava o discurso com movimentos rápidos do alfinete que tinha na mão. Um raio de sol poente vinha brincar na pedra preciosa, de onde Oliveira quase não podia arrancar os olhos. Com o movimento que lhe dava a mão de Cosme, parecia a Oliveira que o alfinete era uma coisa viva, e que parte da alma de Carlota ali brincava e sorria para ele.

O infeliz Cosme interrompeu os louvores que fazia à amada do seu coração e olhou também para o alfinete.

- É realmente bonito! disse ele.

(continua...)

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